A crise da pós-verdade e o resgate da metafísica como fundamento
A chamada pós-verdade existe em uma zona nebulosa, com graves riscos científicos, éticos, políticos e históricos para a vida coletiva na sociedade contemporânea.
Uma era estranha e caótica, possibilitando diversas dissimulações, sem que se considere isso uma verdadeira desonestidade. Ainda que se espalhem as falsidades, as mentiras, ninguém se vê ou é visto como um falsário ou mentiroso.

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Falsidade e falso, mentira e mentiroso passaram a ser palavras expurgadas na era da pós-verdade, caracterizada por seus apelos à emoção e à crença pessoal como critérios para aceitação do que se diz não só na esfera privada, mas também na esfera pública.
No entanto, a questão que se coloca é se essa pós-verdade teria se instalado, na contemporaneidade, em decorrência de um esquecimento da verdade, tão cara a uma visão metafísica dessa mesma verdade.
O engano indolor: a dissimulação na esfera pública e privada
Mesmo que sempre tenha havido mentirosos, geralmente, as mentiras são contadas com hesitação, uma dose de ansiedade, um pouco de culpa, um pouco de vergonha, pelo menos algum acanhamento. Agora, “pessoas inteligentes” criam justificativas para adulterar a verdade e, por conseguinte, a noção mais realista de liberdade, para que possam dissimular as coisas sem culpa. É o que se chama de era da pós-verdade.
Uma era que se distancia, e muito, do próprio ensinamento bíblico bastante conhecido: “[…] conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32). Vive-se nessa era da pós-verdade, estranha, caótica e aprisionante. A pós-verdade existe em uma zona crepuscular, com impactos científicos, éticos, políticos e históricos. Permite todo tipo de dissimulação, sem que se considere isso desonestidade por si mesmo e, inclusive, pelos outros. Mesmo que grassem mais mentiras do que nunca, ninguém se considera ou é considerado mentiroso (Keyes, 2004, p. 15-16).
Mentira e mentiroso passaram a ser palavras que soam muito duras, como se fossem proferidas em tom de severo
julgamento, o que parece não ter mais cabimento na era da pós-verdade. Os homens, em particular, são extremamente cuidadosos para evitar dar a outros homens qualquer oportunidade de dizer: “Tu estás me chamando de mentiroso?” Uma vez ditas essas palavras fatais, é difícil que o diálogo tenha continuidade, sem acirramento de ânimos.
De acordo com o Oxford English Dictionary 1 , o termo mentira é tido, em geral, como uma expressão violenta de reprovação moral, que tende a ser evitada em relações fidalgas.
Parece que não há mais mentiras. Quando muito se diz: “não fui tão feliz em minha fala” ou, ainda, “não fui bem compreendido em minha comunicação”. O termo foi definido pelo mencionado dicionário como um adjetivo relacionado ou denotando circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião
pública do que apelos à emoção e à crença pessoal.
O problema se agrava quando essa chamada pós-verdade, extrapolando a esfera privada, na qual já é capaz de gerar
situações caóticas, se dissemina na esfera pública, assumindo os rumos da ciência, da política e da história no amplo universo da comunicação social.
O antídoto aristotélico: a metafísica como ciência da verdade
Um antídoto para esse cenário caótico, instalado na contemporaneidade, pode ser a retomada da metafísica
aristotélica, em uma de suas configurações principais, qual seja, a metafísica como “ciência da verdade” (Aristotele, 1993, p. 73).
E, desde logo, Aristóteles sublinha que conhecer o verdadeiro significa conhecer a causa e, em particular, que conhecer a verdade metafísica significa conhecer as causas que fazem ser verdadeiras as outras coisas que delas dependem. A verdade de que fala aqui Aristóteles é, portanto, identificada com o ser mesmo, dado que “[…] cada coisa possui tanto de verdade quanto possui de ser” (Aristotele, 1993, p. 73). E, ainda, vale ressaltar, essa verdade não é uma verdade particular, mas sim a verdade última das coisas (Reale, 1993, p. 13).
A contribuição de Tomás de Aquino: razão especulativa e realidade
Tomás de Aquino não deixou de resgatar essa metafísica da verdade aristotélica, em seus comentários, desenvolvendo nove questões indeclináveis sobre ela. Quanto à primeira, a consideração da verdade pode ser vista como fácil, porque, mesmo que nenhum homem possa alcançar o perfeito conhecimento da verdade, ninguém é tão carente dele, de tal modo que nada conheça da verdade. Com relação à segunda, a dificuldade da especulação da verdade envolve duas maneiras para se proceder ao seu conhecimento.
Uma delas se dá por via de resolução, segundo a qual se parte dos compostos para o simples, chegando-se a uno. A outra maneira é a da composição, pela qual se parte dos simples e se dirige aos compostos, alcançando-se o conhecimento da verdade ao se chegar ao todo das coisas em sua multiplicidade.
No tocante à terceira, em todas as coisas que consistem em certo hábito de um em relação a outro, pode haver
impedimento tanto proveniente de um como de outro; logo, a dificuldade do conhecimento da verdade pode ser proveniente de duas origens, ou seja, da parte do objeto e da parte do agente, muito embora a principal causa da dificuldade não seja da parte da coisa, mas sim da parte do agente.
No que diz respeito à quarta, a alma humana começa a conhecer a partir do sensível, o que significa uma elevação intelectiva que ela realiza, cabendo-lhe inteligir a verdade por via de abstração dos fantasmas (imagens), os
quais chegam ao intelecto pelos sentidos. No que se refere à quinta, é preciso salientar que o conhecimento da verdade pertence à filosofia primeira, também denominada metafísica, bem como que esse pertencimento a ela se dá por excelência.
A sabedoria não é prática, mas especulativa. A sabedoria é cognoscitiva das causas primeiras. A razão teórica, isto é, especulativa, difere da razão prática segundo a sua finalidade. O fim da razão especulativa é a verdade, ou seja, ela persegue o conhecimento da verdade.
O fim da razão prática é a obra, porque, embora também pretenda conhecer a verdade, não a procura, porém, como fim último. Se, portanto, a filosofia primeira ou metafísica não é ética, mas especulativa, logo, ela deve mesmo ser chamada de ciência da verdade, porque, maximamente, considera a verdade em suas causas primeiras. Atinente à sexta, as causas, sejam elas materiais, eficientes, finais ou formais, não procedem ao infinito, isto é, as causas das coisas existentes não são infinitas.
No que tange à sétima, as coisas costumeiras são mais ouvidas e, facilmente, mais recebidas. Aquilo que é costumeiro, para muitos, torna-se mais conhecido. Por força do costume, têm mais peso os ditos pueris e as fábulas, às quais os homens assentem, do que o conhecimento da verdade, muito embora a verdade não se reduza, de modo algum, a meros costumes.
No que se relaciona com a oitava, há aqueles que se entristecem se algo é inquirido através de uma diligente discussão intelectiva, o que pode acontecer porque eles têm uma razão débil, incapaz de considerar a ordem da complexidade do que é anterior e posterior, quando se examina alguma realidade.
Por fim, no que tange à nona, é importante que o homem se instrua através de qual modo deve proceder nas ciências em particular para que compreenda aquilo que dizem. O modo que é ótimo para uma ciência não deve ser utilizado em todas. As coisas que são imateriais, segundo si mesmas, são certíssimas, porque são imóveis, porém, possíveis defeitos do intelecto humano podem prejudicar a verdade última dessas substâncias separadas de toda matéria (Aquino, 2016, p.12-16).
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O reconhecimento da realidade como fundamento contra o caos da pós-verdade
Dessa maneira, a verdade requer a afirmação da primazia de algo, da existência por si mesma subsistente, antes e independente desta ou daquela opinião ou consciência, quaisquer que sejam elas.
A chamada pós-verdade, como reflexo do esquecimento da metafísica como ciência da verdade, traz sérios riscos científicos, éticos, políticos e históricos para a vida coletiva na sociedade contemporânea. A pós-verdade existe em uma zona cinzenta, com sérios impactos científicos, éticos, políticos e históricos. Uma era estranha e caótica.
Permite todo tipo de dissimulação, sem que se considere isso desonestidade por si mesmo e também pelos outros. Ainda que se espalhem as falsidades, as mentiras, ninguém se considera ou é considerado mentiroso. Falsidade e falso, mentira e mentiroso passaram a ser palavras que soam muito duras, como se fossem ditas em tom de rigoroso julgamento, o que parece ser descabido na era da pós-verdade, caracterizada por seus apelos à emoção e à crença pessoal.
O problema se agrava quando essa chamada pós-verdade, saindo da esfera privada, na qual já é capaz de gerar situações caóticas, se dissemina na esfera pública, assumindo os rumos da ciência, ética, da política e da história no amplo universo da comunicação social. Entretanto, há um contraponto forte para ela. Trata-se do reposicionamento, na sociedade contemporânea, de uma das concepções metafísicas de Aristóteles, que já assinalava a importância de se reconhecer essa filosofia primeira como ciência da verdade última das coisas, a qual foi amplamente comentada por Tomás de Aquino, o escolástico que repisou a razão teórica como especulativa, cujo fim é o conhecimento da verdade como fim último.
Como essa filosofia primeira ou metafísica não é prática, mas especulativa, na releitura tomista, ela deve mesmo ser chamada de ciência da verdade, porque considera, em grau máximo de excelência, a verdade em suas causas primeiras. A filosofia objetivista, de linha aristotélico-tomista, insiste na verdade como o (re) conhecimento da realidade, o que exige (re) afirmação do fundamento metafísico, cujo axioma primordial consiste em admitir, sem caprichos solipsistas, que a existência existe, vale dizer, que as coisas são o que elas são, que elas possuem uma natureza específica, uma identidade própria, antes e independente de qualquer opinião ou mesmo consciência supostamente verdadeira ou falsa sobre elas.
Marcius Tadeu Maciel Nahur
Natural de Lorena (SP), Coordenador do Curso de Filosofia da Faculdade Canção Nova. Formado em Direito, História e Filosofia. Mestrado em Direito com ênfase na Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Delegado de Polícia Aposentado.
REFERÊNCIAS
AQUINO, Tomás de. Comentário à Metafísica de Aristóteles – I-IV. Tradução de Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. São Paulo: Vide, 2016. v. I. 456 p.5
ARISTOTELE. Metafisica. Traduzione di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993. 824 p.
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Samuel Martins Barbosa et al. São Paulo: Paulinas, 1981. 1663 p.
HORNBY, A.S. Oxford Advanced Learner’s Dictionary. 9. ed. Oxford: Oxford University Press, 2015. 1037 p.
KEYES, Ralph. The Post-Truth Era. Dishonesty and Deception in Contemporary Life. New York: St. Martin’s Press, 2004. 283 p.
RAND, Ayn. Philosophy: who needs it? New York: New American Library, 1984. 308 p.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 6. ed. São Paulo: Paulus, 1990. v. I. 693 p.
REALE, Giovanni. Introduzione. In: Aristotele. Metafisica. Milano: Rusconi, 1993. p.5-36.




