A arte de escutar, um caminho para a saúde auditiva e espiritual
Parafraseando Hamlet, personagem da peça homônima de William Shakespeare, todavia fundamentada numa visão formativa e sem perder o viés da reflexão, levanto o questionamento sobre qual é a ação mais salutar, essencial ou producente para a saúde auditiva do ser humano: ouvir ou escutar? Será que há diferenças, contraposição, contiguidade, consonância? A resposta a tal pergunta é uma informação que precisa ser propagada e uma reflexão realizada de forma pessoal e periódica. 0 3 de março é o Dia Mundial da Audição, quando, todos os anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) promove uma nova temática com o objetivo de conscientizar e sensibilizar a sociedade acerca da surdez, promovendo ações e iniciativas de prevenção e cuidados contra a deficiência auditiva.

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E quanto à surdez espiritual? O que podemos fazer para prevenir nossa alma e o nosso ser dessa doença fatal? O ouvido é um sistema ósseo composto por canais por onde passam líquidos que estimulam as células sensoriais do equilíbrio e da audição. O aparelho auditivo do homem é, ao mesmo tempo, um sistema complexo, mecânico, acústico e reflexivo. Qualquer alteração nesse processo pode dificultar a audição ou provocar problemas auditivos e de estabilidade.
O poder da escuta: compreensão, atenção e alteridade
Ouvir ou escutar? Eis a questão! Ouvir provêm do latim audire, que significa perceber o som, é um processo mecânico, ou seja, é a capacidade do ouvido para captar os sons externos como fala, ruídos, melodias, sons contínuos, intermitentes, de alta ou baixa frequência e/ou intensidade. Somente ouvir algo não significa que a informação foi entendida. Para ouvir, é imprescindível que o ouvido esteja saudável, que ele seja capaz de captar as ondas sonoras espalhadas pelos ares, por meio das orelhas externas que funcionam como perfeitos amplificadores sonoros; transmitir este som por meio do ouvido médio, um verdadeiro canal por onde o som vai sendo purificado até chegar ao ouvido interno, no cérebro, onde é processado e compreendido.
Nessa fase, não é mais apenas ouvir, é uma ação mais profunda e complexa, é escutar. Portanto, o verbo escutar, também proveniente do latim auscutare, é o ato de dar atenção e compreender o som que é ouvido. Escutar é uma habilidade que se desenvolve à medida do crescimento e amadurecimento da pessoa, também é um processo consciente e livre da vontade humana para compreender o que é ouvido. É ainda uma atitude de alteridade, onde há respeito, consideração e abertura ao
diálogo com o outro.
Escutar é mais do que dar atenção ao som, é ouvir com o coração. Contudo, tanto para ouvir quanto para escutar, a pessoa precisa ter seu aparelho auditivo íntegro, em perfeitas condições de funcionamento, portanto, deve adotar medidas preventivas e protetivas para com o seu ouvido e cérebro. Uma perda auditiva de menor ou maior intensidade pode causar problemas e dificuldades significativas na vida diária da pessoa, influenciando essencialmente na comunicação, podendo tornar
seus relacionamentos e seu viver mais difíceis.
Seu mundo sem som?
As causas mais frequentes de perdas auditivas são: o uso constante de cotonetes; a exposição a barulhos altos por longos períodos, como ferramentas elétricas; ouvir músicas em alto volume; o envelhecimento natural; barulhos súbitos e muito altos, como disparo de arma de fogo ou proximidade a explosão e infecções do ouvido, particularmente em crianças e jovens adultos. As causas menos comuns de perdas auditivas incluem as doenças autoimune (doenças que levam o sistema imunológico do corpo a atacar os próprios tecidos); doenças sistêmicas como diabetes mellitus e hipertensão arterial que podem alterar a vascularização dos ouvidos e provocar a deterioração do órgão; a genética, isto é, condições que causam surdez ou perdas auditivas herdadas do histórico familiar; defeitos congênitos, onde a pessoa nasce com alguma deformidade no ouvido; o uso de alguns medicamentos ototóxicos que lesam os ouvidos como efeitos colaterais; lesões nas orelhas e tumores dentro do ouvido ou em partes do cérebro e prematuridade infantil.
Sabemos que a perda auditiva pode não ser perceptível inicialmente, e mesmo que nem todos os danos auditivos possam ser evitados, existem algumas atitudes que podem reduzir o risco ou até impedir a perda auditiva relacionada à idade e/ou induzida.
Seguem algumas dicas importantes para serem adotadas e divulgadas.
- Realizar o teste da orelhinha, teste fundamental para a detecção precoce dos problemas auditivos na infância.
- Evitar barulhos altos por tempo prolongado.
- Usar dispositivos de proteção adequados. Em muitas situações, a exposição a ruídos altos é inevitável, como na rotina de profissionais que operam máquinas, atuam em fábricas ou trabalham com música e eventos. Nesse caso, é fundamental seguir as orientações de ergonomia previstas para cada área de atuação.
- Usar fones de ouvido com cuidado, o volume deve ser suficiente para ouvir de modo confortável. A OMS estima que mais de 1 bilhão de jovens correm o risco de desenvolver perda auditiva permanente na atualidade devido a essa e outras práticas inseguras.
- Manter as orelhas secas, o excesso de umidade nos ouvidos pode facilitar a entrada de bactérias e um possível ataque ao canal auditiva com proliferação bacteriana.
- Tratar as infecções adequadamente, seguindo sempre as orientações médicas. É importante ficar atento sempre que perceber sinais de gripes e resfriados fortes e dores no ouvido.
- Não introduzir objetos no canal auditivo. Ao colocar qualquer objeto dentro do ouvido, existe o risco de danificar partes sensíveis, como o tímpano e causar perda auditiva. Ter cera no ouvido é normal e importante para a saúde auditiva.
- Consultar o otorrinolaringologista sempre que necessário.
Escutar com o coração, a cura para a surdez existencial
Ouvir e escutar com os ouvidos é algo natural ao ser humano. Escutar com o coração também deveria ser, pois essa ação tem o poder não somente de transformar as ondas sonoras em som inteligível, como promove a escuta da própria voz, favorece a compreensão dos nossos semelhantes e nos torna assaz escutadores da voz do Sagrado que habita nosso interior. Quem não escuta com o coração, pode tornar-se um surdo existencial, já não se trata apenas de uma perda auditiva física, mas de uma surdez espiritual, talvez mais grave e nociva à realidade de filho de Deus. Muitas vezes, a causa dessa surdez é o pecado, mas podem ser também as dores, as feridas, os traumas ou os sofrimentos diversos, pois um coração machucado torna-se fechado e isolado, dificilmente se comunica, torna-se surdo, não ouve nada nem ninguém.
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Jesus foi um homem que escutou com o coração. Certa vez, levaram um surdo-mudo para que Ele o curasse. Ao tocar-lhe, Jesus disse: “Effathá!”, ou seja, “Abra-te”. Imediatamente, os ouvidos do homem abriram-se, sua língua soltou-se e ele começou a falar corretamente (Mc 7,35). Antes de se encontrar com Jesus, aquele homem era um sofredor, estava fechado e isolado em um mundo de silêncio, para ele era difícil comunicar-se. Com fé, atitude e no encontro com Deus feito homem, ele foi curado, houve uma abertura partindo dos órgãos auditivos até o coração, o surdo-mudo se abriu para falar e relacionar-se. É isso que Jesus veio fazer. Ele quer nos libertar, nos tornar capazes de viver uma plena relação conosco, com o outro e com o Pai.
“Abre-te!” O chamado divino para uma escuta transformadora
Jesus quer nos ensinar a escutar a voz de Deus, a compreender a linguagem do Amor que fala ao nosso coração. Este ano, o tema proposto pela OMS para o Dia Mundial da Audição é “Mudando mentalidades: empodere-se para tornar o cuidado auditivo uma realidade para todos. É necessário reforçar a importância de atitudes práticas e conscientes para proteger nossa audição e apoiar os deficientes auditivos. E numa atitude de empoderar-se da filiação Divina, todo ser humano é convidado a escutar a voz do Divino Mestre que diz “Abre-te!”. Essa é uma palavra dirigida por Deus a cada um de nós. É um convite a não nos fecharmos em nós mesmos, a sermos sensíveis aos problemas e dores dos outros.
Ele pede abertura não só dos ouvidos, mas da vida inteira, é um chamado a escutar e deixar Deus entrar em nosso interior, curar nossas feridas e nos libertar de toda surdez espiritual, pois o pior surdo é aquele que não quer ouvir. Ouvir com os ouvidos e escutar com o coração, eis a nossa meta, eis a nossa missão.
Jací Fagundes
Escritora, Mentora do Simplesmente Mulher, Missionária, Terapeuta, Fonoaudióloga e Filósofa.