A missão da sala de aula
Na era da “modernidade líquida” (BAUMAN, 2014, p.20) – em que os “sólidos”, como as instituições, principalmente a família e a escola, se veem, cada vez mais derretidos – ao homem é progressivamente subtraída a possibilidade de realizar valores em seu cotidiano.
O ser humano encontra-se, então, em um vácuo existencial” (FRANKL, 2011, p.9), em que o sentimento de falta de sentido na vida é sua constante queixa. Vive-se, assim, uma crise de sentido que afeta a vida ordinária do homem comum.

Foto Ilustrativa: monkeybusinessimages by Getty Images
Essa crise de sentido se propagou intensamente depois da pandemia da Covid-19, adentrando direta e/ou indiretamente em toda sala de aula de qualquer instituição educacional mundo afora.
Não é mais raro professores de crianças da educação infantil a jovens de universidades conviverem com alunos laudados com crise de pânico, depressões, transtorno de ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo… a lista é longa, chegando a ter no laudo escrito somente: “criança de pandemia”. É a demanda da escola da atualidade, como muitos professores têm dito: “é nosso novo normal”.
Leia mais:
.:Inteligência artificial: inteligente e ética?
.:A vida além do prompt: a ética no uso da IA
.:O futuro da cultura em mundo com Inteligência Artificial
.:Tecnologia, crianças, adolescentes e ansiedade: o que fazer?
Por um lado, há essa demanda real e, por outro lado, a sociedade chegou ao novo mundo da Inteligência Artificial (IA). Há quem diga que a IA veio também para substituir os docentes e, em muitos aspectos da docência, já estão. Contudo, mesmo em escolas totalmente tecnológicas – algumas extinguiram caderno, livro e lápis, tudo substituído por alguma tela – os alunos encontram-se, cada vez mais, numa sensação de falta de sentido na vida. Em outras palavras, há, ao mesmo tempo, um “avanço tecnológico” e uma decadência de sentido na vida.
O papel essencial da educação
É claro que, diante dessa crise, todo processo de ensino-aprendizagem fica prejudicado, pois não há como subtrair a cognição do contexto social, histórico, biológico e psíquico de uma pessoa. Portanto, diante dessa era, a educação não deve limitar-se a transmitir somente conhecimento.
Ela tem papel fundamental, segundo Frankl (2011), de “refinar a capacidade humana de encontrar aqueles sentidos únicos que não se deixam afetar pelo declínio dos valores universais”.
Para encontrar o sentido na vida cotidiana, diante da crise de sentido, faz-se necessário “alimentar, a montante, de fontes essencialmente éticas e espirituais.” (CLODOVIS BOFF, 2014, p. 532). Dessa forma, para essa missão, nenhuma IA conseguirá executar. Mais do que nunca, as instituições educacionais precisam de um professor para guiar seus alunos naquilo que lhe é propriamente humano e que pode estar afetado pelos contextos descritos acima: a busca do sentido da vida.
Frankl (2003) faz uma análise sobre o êxodo de Israel através do deserto, quando Deus caminha em forma de nuvem à frente do seu povo para guiá-lo. O citado autor interpreta, dizendo que o sentido caminha à frente do ser e é justamente o seguir a “nuvem” que faz com que os homens se orientem pelo caminho certo, coerente, digno e humano. Diante das crises da atualidade, percebem-se crianças e adolescentes desorientados, carentes e cegos para ver essa “nuvem” diante de si.
É como se clamassem por um guia, um condutor, uma mão para guiá-los à “nuvem”. O povo de Israel tinha Moisés, que cumpriu com excelência sua missão de levá-los à Terra Prometida; a maioria das crianças e adolescentes do nosso país só tem um professor para guiá-los para o sentido da vida.
O ofício do professor
Cada professor tem essa tarefa, como de Moisés, de “favorecer a depuração da consciência ética, de sorte que o homem se sensibilize o suficiente para poder captar o postulado inerente a cada situação”, ou seja, encontrar sentido em cada situação única da vida, realizando valores (FRANKL, apud, MIGUEZ, 2019, p.21).
A educação deve “promover a capacidade de escolher e tomar decisões: o que tem sentido”. Assim, o discente vai vivendo sua liberdade com responsabilidade, aprendendo, então, fazer bem suas escolhas. Responsabilidade significa “uma responsabilidade para levar à realização das possibilidades, em si transitórias, de realizar valores, e, com isto, depositar algo de valor no passado, ou seja, no verdadeiro existir.” (FRANKL, apud, FREITAS, 2018, p. 76).
Assim, o aluno desenvolve resiliência para superar suas crises à medida em que se percebe capaz, livre e responsável perante a vida. A educação para o sentido ajuda o educando a proteger-se do vazio e/ou atravessar toda crise existencial. A vontade de sentido, a busca por ele e o encontro deste na vida, é o principal fator “protetor da saúde mental”. (FEITAS, 2018, p.29).
O professor que nega essa orientação básica da vida, acreditando que sua função é só transmitir conhecimento, contribui, de alguma forma, com o vácuo existencial (FRANKL, 2011, p.108). Negar a orientação básica da vida acaba “por oferecer uma imagem reducionista do homem, transformando-o em ‘nada mais que’ resultado de processos condicionantes, sejam estes psicológicos, sociológicos ou culturais” (MIGUEZ, 2019, p.20).
Nessa era da IA e das crises existenciais, chega a ser “urgente” professores assumirem a missão de seu ofício, que é muito mais que técnicas ou metodologias, é profetismo: ser Moisés no chão da sala de aula.
Mildren Lopes Wada Duque
Psicóloga, Co – Fundadora das Missões Maria Peregrina, Gestora Escolar, Logoterapeuta, Psicopedagoga, Especialista em Crise Existencial e Mentora da Pedagogia Maria Peregrina. Mestra em Educação e Saúde. Casada e mãe de dois lindos filhos.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BOFF, Clodovis. O livro do sentido: crise e busca de sentido hoje (parte crítico-analítica). Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2014.
FRANKL, V.E. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. 2011. Psicoterapia e sentido da vida: fundamentos da logoterapia e análise existencial. 2003.
FREITAS, Marina L Silveira. Pedagogia do sentido: contribuições de Viktor Frankl para a educação. 2ed. Ribeirão Preto: IECVF, 2018.
MIGUEZ, Eloisa Marques. Educação em Viktor Frankl: entre o vazio existencial e o sentido da vida. Curitiba: Brazil Publishing, 2019.