Carta Encíclica

O Evangelho da Criação

É necessário o exercício da cidadania com tudo o que é único, próprio e indispensável do Evangelho da Criação

Certamente, muitos podem se perguntar sobre as razões que levaram o Papa Francisco a escrever a Carta Encíclica Louvado Sejas – sobre o cuidado da casa comum. Essa interrogação parece ser desdobramento da surpresa de ver um líder espiritual refletir sobre uma temática que desafia cientistas e leva os governantes mundiais a equívocos – por não cumprirem os acordos firmados, tão necessários para a preservação do planeta.

Questiona-se também sobre o que a fé traz de iluminação no tratamento dos enormes desafios contemporâneos relacionados ao meio ambiente. Bastaria considerar a situação abominável e vergonhosa dos “descartados da sociedade”, como sublinha o Papa Francisco, desrespeitados em sua dignidade humana e privados do contato com a natureza, para compreender que a defesa do meio ambiente é compromisso cristão.

De fato, a vivência da fé é desafiada quando se constata a deterioração da ecologia, fruto da lastimável degradação humana e social. Em jogo está a dignidade de toda pessoa, que é dom sagrado. A fé cristã considera cada ser humano como morada de Deus. O desrespeito à dignidade, em ações que promovem a miséria, a exclusão e todo o tipo de injustiça, é, portanto, injustificável ato de profanação.

Há um complexo horizonte de descompassos – que abrange a violência, a dependência química, a exploração lucrativa e perversa – ferindo a dignidade humana. Gradativamente, “a casa comum” torna-se um caos, por condutas irracionais e mesquinhas. Para recuperar os vínculos de integração e de comunhão, é preciso a indispensável luminosidade da razão.

Fundamental, também, é buscar a luz maior da fé, capaz de reorientar condutas e procedimentos, tornando-os marcados por tudo o que é próprio do amor. Por isso mesmo, o Papa Francisco fala do Evangelho da Criação, cujo sustento e vivência se firmam nas razões e nas convicções da fé.

O Santo Padre é muito realista e direto quando comenta sobre aqueles que, no campo político e intelectual, decididamente, rejeitam a ideia de que existe um criador ou a considera irrelevante. A consequência é o fechamento de portas para contribuições muito importantes, em diversos campos, como os da ética e da espiritualidade. As religiões podem oferecer ajuda indispensável, indicando caminhos para sair das muitas crises, inclusive a ambiental.

Basta analisar a complexidade da crise ecológica hoje enfrentada para reconhecer que apenas um tipo de consideração ou de contribuição não será suficiente para se encontrar soluções e transformar, com urgência, a realidade. É preciso recorrer às riquezas culturais, à arte e à poesia, bem como à vida interior e à espiritualidade. Não é de se duvidar que a incompetência governamental e de segmentos da sociedade na efetivação de compromissos para a preservação do planeta deve-se à falta desses horizontes poéticos, artísticos e espirituais. Quando a vida interior não é bem cultivada, prejudica o exercício autêntico e qualificado da cidadania. Isso vale para todos – de governantes a religiosos, de autoridades e construtores da sociedade pluralista a pessoas mais simples.

É preciso acolher as diferentes luzes que podem indicar no fim do túnel a abertura de nova etapa para a humanidade, especialmente no que se refere ao modo de viver na “casa comum”. Indispensável é a luz da fé em diálogo com o pensamento filosófico, que produz força de sustento no processo de cultivar a paz, a justiça e a prática efetiva da solidariedade. Nesse sentido, a fé cristã tem contribuições muito significativas e indispensáveis para promover o cuidado com a natureza. A fé desperta a consciência de cada pessoa a respeito de seu próprio lugar no conjunto da criação, a partir da obediência amorosa ao seu Criador. A força da fé, indubitavelmente, alcança mais resultados que protocolos mesquinhamente boicotados no escondido das sombras, formadas pela ambição sem limites e por descasos humanitários tão frequentes. Todos estão convocados ao conhecimento das convicções fundamentais da fé cristã para qualificar o exercício da cidadania com tudo o que é único, próprio e indispensável do Evangelho da Criação.

 


Dom Walmor Oliveira de Azevedo

O Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, é doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atual membro da Congregação para a Doutrina da Fé e da Congregação para as Igrejas Orientais. No Brasil, é bispo referencial para os fiéis católicos de Rito Oriental. http://www.arquidiocesebh.org.br