Jesus passou quarenta dias no deserto das montanhas de Judá, confrontando-se com a realidade humana que havia assumido. Ele, que é o Verbo Eterno de Deus, fazendo-se participante de tudo o que é nosso, menos no pecado. Como nosso ambiente de Belém do Pará não nos oferece montanhas a serem contempladas ou escolhidas como espaço de retiro e reflexão sobre nossa humanidade, pensei em passear pelas nossas baixadas, passando pelas beiras dos canais que, tantas vezes, transbordam, entrar pelas vielas e passagens pelas quais transitam homens e mulheres de nosso dia a dia, para encontrá-los com suas vidas carregadas de provocações a si mesmos, à sociedade e a nós todos, Igreja do Deus Vivo. São rostos, muitas vezes, sofridos; mais vezes alegres e esperançosos. É maravilhoso contemplar o mistério do ser humano em sua riqueza!
Encontro gente que procura os meios necessários para levar o pão para a família. Vi tantas barracas abertas nos múltiplos e variados mercados e feiras. Vende-se de tudo, muitas vezes a quem pode comprar pouco! Um guardador de carros, nas ruas de Belém, me pedia ajuda nos dias de carnaval porque pouco trânsito significa para ele pouco dinheiro e pouca comida em casa! O alimento é essencial e pode tornar-se uma tentação quando a sociedade não provê o trabalho necessário a todas as camadas da sociedade, ou quando se espera apenas de Deus o milagre, sem que façamos a nossa parte. “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. E Sua Palavra pede que, em tempo de Fraternidade, multipliquem-se os gestos de partilha entre nós, para que sejam fartas nossas mesas. A cada ano se repete no Brasil o “Natal sem fome”, enquanto o nosso sonho e projeto de irmãos há de ser um mundo sem fome, na superação do desperdício e na capacidade de olhar ao nosso redor, para fazer a nossa parte. Para que haja o pão, só com a Palavra de Deus vivida!
Ouvi, pelas ruas da cidade, as histórias de pessoas amargas com a própria vida, outras felizes pelos resultados dos programas compensatórios e de aumento da renda, promovidos por todos os níveis de Governo. Vi as pessoas tentando a Deus para que resolva todos os problemas. Vi Deus transformado em objeto a serviço apenas de prosperidade pessoal, chamado em causa apenas para interesses individualistas. Vi o nome de Deus pronunciado em vão em tantos cantos. Olhei para os altos e magníficos edifícios construídos e os descobri contraditórios, sinais de um progresso evidente e valioso e, ao mesmo tempo, testemunhas de uma sociedade cheia de medos e defesas. Dos pobres aos ricos, da plebe às autoridades, dos leigos aos clérigos, se escute a voz do Senhor: “Não tentarás o Senhor teu Deus”.
A cidade traz consigo o jogo do poder. “Sabe com quem você está falando?”, dizem as caras fechadas dos donos de pontos de tráfico ou de jogo. Dizem-nos os detentores do poder civil quando se isolam e não veem os mais pobres. Repitam isso os seguranças que se multiplicam pela cidade. De propósito, muitas vezes, faço meu roteiro passar por lugares ditos perigosos, para desmontar com um cumprimento as resistências reveladoras do medo recíproco. Já fui procurado por detentos que encontrei nas penitenciárias que, de volta à sociedade, foram conquistados apenas por gestos simples ou por uma palavra do Evangelho transformada em vida. Têm mais jeito de gente e não precisam ameaçar ninguém. Tenho visto a humanidade estampada, com angústias e esperanças, em pessoas dos níveis mais altos da sociedade desarmadas pela força da graça para serem nada mais do que filhos e filhas de Deus. Todos, sem exceção, encontrarão seu lugar e sua realização quando vencerem as tentações e ouvirem “Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a Ele prestarás culto”.
“Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima de vossas forças. Ao contrário, junto com a tentação ele providenciará o bom êxito, para que possais suportá-la” (1 Cor 10, 13). As tentações fazem parte da vida do cristão e Jesus quis passar por elas para mostrar o caminho da vitória, na compreensão da Palavra do Senhor e na vivência desta. No início do tempo da Quaresma, sem medo de ser humanos, todos somos convidados para tomar a estrada, quais peregrinos do Absoluto, certos das novidades que o Senhor mesmo nos mostrará, nas retas ou encruzilhadas da vida.