Vivemos tempos em que a vida humana enfrenta riscos cada vez mais sutis, mas não menos graves. As estatísticas em relatórios e manchetes revelam números alarmantes. Contudo, por trás dos números, estão rostos reais, histórias humanas, vidas com destinos interrompidos ou ameaçados.

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O aborto legitimado como direito, a eutanásia apresentada como gesto “humanitário”, a violência disseminada nos lares e nas ruas, a exclusão dos pobres e a indiferença diante dos mais frágeis são retratos de uma sociedade que parece ter perdido a consciência do valor sagrado da existência humana. É nesse horizonte que a Igreja, mãe e mestra, ergue sua voz, pois a defesa da vida é um imperativo que não admite adiamentos.
A origem da vida humana
Desde o primeiro capítulo da Sagrada Escritura, a revelação bíblica nos coloca diante da grandeza da vida. O autor sagrado proclama: “Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança” (Gn 1,27). Esse versículo, tantas vezes repetido, guarda uma profundidade que não pode ser esquecida. Não se trata apenas de uma afirmação teológica, mas de uma certeza que define a identidade de cada pessoa: toda vida, sem exceção, é querida, acompanhada, sustentada pelo Criador. É Ele quem a concede, quem a chama, quem a orienta ao seu destino eterno.
Os profetas do Antigo Testamento foram incansáveis ao recordar que a fidelidade a Deus jamais pode estar separada da defesa da vida. A voz profética ecoa com firmeza: “Aprendei a fazer o bem, procurai o direito, socorrei o oprimido, fazei justiça ao órfão e defendei a causa da viúva” (Is 1,17). O consolo de Deus se manifesta no cuidado aos pequenos, aos esquecidos, aos vulneráveis. E esse chamado encontra plenitude no Evangelho de Cristo, quando Ele declara: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). A Encarnação do Filho de Deus ilumina todo destino humano: nenhuma vida é descartável, nenhuma pessoa é inútil, nenhum rosto é irrelevante aos olhos de Deus.
Uma posição histórica e inabalável
Não é de hoje que a Igreja se coloca como guardiã da vida. Os cristãos dos primeiros séculos, diante dos desafios de uma cultura que muitas vezes desvalorizava os fracos, foram claros e coerentes. Já os Padres da Igreja reconheciam, no aborto, uma forma de homicídio antecipado, uma afronta direta ao Criador. O Concílio de Elvira, no século IV, e o Concílio de Trento, no século XVI, mantiveram essa firmeza, pois a vida humana não é hoje e nunca foi negociável para a Igreja Católica.
Santo Agostinho ensinava que, mesmo no ventre materno, a criança já se encontra sob os cuidados da Providência Divina. Santo Tomás de Aquino, iluminado pela razão e pela fé, afirmava que a vida é o primeiro bem a ser preservado, fundamento de todos os outros direitos e valores.
Séculos mais tarde, o magistério da Igreja continuou a reforçar esse ensinamento. Paulo VI, na encíclica Humanae Vitae, apresentou o caráter sagrado da vida desde a concepção. São João Paulo II, com vigor profético, denunciou a “cultura da morte” e convidou ao compromisso pela “cultura da vida”, especialmente em sua encíclica Evangelium Vitae. Bento XVI, em Caritas in Veritate, recordou que não existe desenvolvimento verdadeiro quando este se constrói sem abertura à vida. E o Papa Francisco, em sintonia com a visão de ecologia integral, reafirma: não é progresso buscar soluções para problemas sociais eliminando vidas humanas (Laudato Si’, 136). Ao longo dos séculos, portanto, a Igreja permanece fiel à mesma convicção: toda vida é dom, toda vida é digna, toda vida pertence a Deus.
A cultura do descarte
O maior inimigo atual da vida, no entanto, talvez não seja apenas a violência explícita, mas a indiferença. A cultura contemporânea, marcada por critérios utilitaristas, tende a medir as pessoas pela produtividade, pela saúde ou pela conveniência que apresentam. Não é raro ver idosos tratados como peso, doentes considerados fardos, crianças ainda não nascidas vistas como empecilho. Essa mentalidade, alimentada por uma lógica de descarte, mina silenciosamente a dignidade de muitos.
A fé cristã, contudo, aponta um caminho diferente. Ela proclama que cada existência é sagrada, cada ser humano é insubstituível, cada rosto é imagem do Criador. Contra a indiferença, somos chamados à sensibilidade. Contra a lógica do descarte, somos chamados ao cuidado. Contra o pragmatismo frio, somos chamados ao amor.
Um compromisso que exige ação concreta
A defesa da vida não pode se resumir a discursos bem elaborados ou a declarações ocasionais. Trata-se de um compromisso integral que exige ações concretas. Defender a vida significa apoiar as gestantes em dificuldades, oferecer caminhos de acolhida às famílias, estar ao lado dos idosos e enfermos, promover a dignidade dos pobres, respeitar a criação confiada por Deus ao cuidado humano. Trata-se de uma missão que une justiça social, fraternidade e cuidado com a casa comum. Não há como proclamar o Evangelho sem se engajar com a defesa da vida em todas as suas fases e condições.
O testemunho cristão exige coerência. Não basta apenas afirmar que a vida é dom, é preciso que nossas comunidades sejam espaços onde cada pessoa se sinta valorizada, respeitada e protegida, inclusive antes de nascer. O anúncio da vida deve estar unido a gestos concretos de acolhimento e solidariedade. Cada gesto de cuidado com o próximo é uma proclamação silenciosa, mas poderosa, contra a cultura da morte.
Um testemunho de fé na ressurreição
Defender a vida ultrapassa, portanto, qualquer simples bandeira moral. Trata-se, sobretudo, de um testemunho de fé no Deus que se fez carne. A Igreja não anuncia uma ideia abstrata, mas proclama a vitória de Cristo sobre a morte. A Ressurreição de Jesus é a resposta última diante do sofrimento e da finitude. É ela que nos convida a olhar cada vida humana com esperança, a ver em cada pessoa uma promessa de eternidade.
São João Paulo II, na Evangelium Vitae, lembrou que “o homem é confiado ao homem”. Isso significa que cada um de nós tem a missão de cuidar do próximo, de ser guardião da vida que Deus nos confia. Não se trata de uma tarefa reservada a alguns, mas de uma vocação universal. Todos somos chamados a ser profetas da esperança e construtores de uma cultura da vida, onde ninguém se sinta descartado, mas reconhecido como dom precioso de Deus.
A defesa da vida é urgente, e sempre será uma missão permanente da Igreja
Do ventre materno ao último instante, cada vida merece ser amparada e protegida. É preciso coragem para testemunhar isso, sensibilidade para cuidar dos mais frágeis e fé para proclamar que a última palavra nunca é da morte, mas da Ressurreição.
Que o Espírito Santo nos renove nessa missão de ser guardiões da vida, e que a Mãe Santíssima, modelo de confiança e entrega, interceda para que nossas comunidades sejam sempre lugares de acolhimento e de defesa da vida humana.
Dom Devair Araújo da Fonseca – Bispo da Diocese de Piracicaba