Tempo de cuidar para não se perder experiências de fé que produziram heranças inestimáveis
Enquanto se vive, de diversos modos, o clima festivo dessa época do ano, é oportuno deixar ecoar nos corações o apelo convocatório de Santo Agostinho, lá no século quinto, em um de seus sermões: “Desperta, ó homem: por tua causa Deus se fez homem. Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos e sobre ti Cristo resplandecerá (Ef 5,14).
Por tua causa, repito, Deus se fez homem. Estarias morto para sempre, se ele não tivesse nascido no tempo. Jamais te libertarias da carne do pecado, se ele não tivesse assumido uma carne semelhante à do pecado. Estarias condenado a uma eterna miséria, se não fosse a sua misericórdia. Não voltarias à vida, se ele não tivesse vindo ao encontro da tua morte. Terias perecido, se ele não te socorresse. Estarias perdido, se ele não viesse salvar-te. Celebremos com alegria a vinda da nossa salvação e redenção. Celebremos este dia de festa, em que o grande e eterno Dia, gerado pelo Dia grande e eterno, veio a este nosso dia temporal e tão breve.” Esse apelo essencial é vivamente oportuno no coração deste tempo.
Diante do desafio de se construir a paz universal, uma questão deve interpelar cada pessoa: existe outro fundamento maior e mais completo dessa paz que o amor revelado no Filho de Deus encarnado, Jesus Cristo? A celebração do Natal ultrapassa as luzes e cores não raramente presentes nas praças e casas. Alguns enfeites com tons mais chamativos, mas sem força para remeter ao núcleo central do Natal do Senhor: a manifestação mais plena e incontestável de amor. Acolhido no mais íntimo do coração, esse amor reconcilia cada um com Deus e consigo mesmo, renova as relações entre as pessoas e gera uma indispensável sede de fraternidade, único remédio para se vencer a guerra e acabar com o flagelo amedrontador da violência.
O Natal é a festa do amor e da reconciliação. O presépio, na sua singeleza com força educativa, quando surge no atual contexto – marcado pelas estratégias, armações, cálculos e disputas pelo poder – remete-nos à simplicidade como caminho para descobrir o segredo de saber viver. Não apenas pela indiscutível singeleza da manjedoura, fora da cidade, entre os animais. Acima de tudo, pelo desconcerto que se experimenta ao contemplá-lo, quando se constata que a entrada de Deus no mundo, o Filho encarnado, ocorre sem apego algum à condição divina. O presépio, portanto, é remédio para o orgulho e a altivez.
A encarnação do Verbo de Deus, Jesus Cristo, a festa do Natal, é o antídoto que combate, na raiz, o sofrimento. Desmobiliza a lógica da prepotência, alimentada pelo desejo de dominar e explorar os outros, por ideologias de poder e ódios que se perpetuam entre pessoas, grupos, partidos, tribos, culturas e nações. O verdadeiro sentido do Natal está na contramão desses descompassos que alimentam incontáveis cenários e impedem avanços. Há um silabário da justiça e uma gramática da paz cuja aprendizagem não tem escola mais adequada e eficiente do que aquela em que Ele, Cristo, é o mestre. Seus ensinamentos, pela força pedagógica de sua proximidade – Natal é festa da proximidade de Deus – não se reduz e não se traduz em qualquer tipo de manifestação, mesmo as que contêm elementos religiosos.
O desvirtuamento que se vê impetrado sobre o sentido do Natal pelo consumismo não é menor do que aquele advindo de equivocadas expressões, dinâmicas e práticas religiosas.
São casas de culto que buscam apropriar-se do Natal sem priorizar a construção das bases da personalidade e da cultura a partir do que há de mais autêntico nas raízes cristãs. Silenciosamente, esses desvirtuamentos comerciais e culturais estão produzindo uma séria crise que atinge a beleza do cristianismo e a sua contribuição incalculável para a paz.
Ainda é tempo de cuidar para não se perder experiências de fé que produziram heranças inestimáveis, são bases de culturas e caminho para construir um mundo melhor. Ecoe mais uma vez a indicação de Santo Agostinho: “Como veio a paz à terra senão por ter a verdade brotado da terra, isto é, Cristo ter nascido em carne humana? Ele é a nossa paz: de dois povos fez um só, para que fôssemos homens de boa vontade, unidos uns aos outros pelo suave vínculo da caridade.”
Nessa compreensão e vivência se poderá, copiosamente, celebrar o Natal, delicadeza de Deus.