Espiritualidade

Reflita sobre as sextas moradas e a união extática no caminho espiritual

O crescimento espiritual de cada um de acordo as moradas

Ao iniciarmos essa série de artigos sobre o caminho espiritual que leva à santidade, segundo as observações dos místicos carmelitas e dos teólogos dominicanos, estabelecemos como meta um mapeamento do caminho de forma didática e progressiva. O principal intuito, então, não é aumentar o conhecimento teológico de ninguém, muito menos satisfazer uma certa curiosidade sobre a mística cristã, mas ajudar concretamente a que se reconheça o percurso espiritual e que se possa progredir nele.

Por isso, embora a via mística seja composta de uma enorme variedade de fenômenos, estamos nos atendo, aqui, a somente aqueles que servem de balizamento para o caminho espiritual. Em outras palavras, tratamos, nestes artigos, dos acontecimentos marcantes em cada fase, e que servem de índice para o progresso espiritual. Na via ascética, estendemo-nos em descrições pormenorizadas para oferecer subsídios ao progresso espiritual e contribuir, na medida do possível, com o crescimento espiritual de cada um.

Reflita sobre as sextas moradas e a união extática no caminho espiritual

Foto Ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

Passagem das moradas

Trataremos aqui, então, da passagem entre as quintas e sextas moradas e da chegada delas.

No fim do período das quintas moradas, a oração de simples união dá lugar ao oitavo grau de oração, a oração extática. Recapitulando e esclarecendo o processo intenso de recolhimento em si mesmo e união com Deus, vimos que a oração de recolhimento infuso permitiu que a alma permanecesse ligada com Deus em uma união firme que possibilita a entrega pessoal à oração. A oração de quietude, que a sucedeu, além do recolhimento, encheu a alma com a paz completa de Deus, elevando o sentimento de pertença e a alegria desta união ao máximo. Esse grau de oração faz com que a vontade seja plena de Deus durante o período de oração. Após a submissão da vontade, a oração de simples união permite que inteligência e memória se unam à vontade numa completa entrega a Deus. É nesse grau de oração que, finalmente, o cristão se vê livre das distrações durante a oração. Como vimos no artigo “o que são as quintas moradas da vida espiritual”, durante este grau de oração, a alma começa a ter suas primeiras experiências de êxtases.

A princípio, quase imperceptíveis, os êxtases na oração de simples união revelam-se como períodos de lapsos de tempo que atingem aquele que reza. Exteriormente, não há distinção nesses graus de oração explicados até aqui, mas, interiormente, aquele que reza acredita que se passaram cinco minutos, quando podem, na realidade, terem transcorrido algumas horas do dia ou da noite. O ajudante de São Francisco Xavier narrou, em seu processo de canonização, que o santo tinha o hábito de rezar duas horas logo após o jantar e que dava instruções de ser chamado após esse período. Permanecendo em silêncio, ajoelhado em oração, várias vezes ao ser chamado após duas horas, o santo respondia: Já?

O êxtase, portanto, revela-se quando as faculdades da alma (inteligência, memória e vontade) não só estão unidas com Deus, mas perfeitamente submetidas a Ele. Ou seja, em determinado momento, Deus toma posse das faculdades alienando-as do próprio ser humano, que as possui e de tudo à sua volta.

Oração da união extática

Somente que, no processo conformativo que Deus vem realizando na alma durante a vida mística, alguns períodos de êxtases não bastam. Chegamos ao oitavo grau de oração, a oração de união extática. Esse grau de oração, bem como os fenômenos que produz na alma, são os índices da chegada das sextas moradas.

A oração de união extática, diferentemente dos êxtases anteriores, é visível também exteriormente. De fato, uma completa imobilidade se estabelece e, se acontece por grandes períodos, é impossível não ser notada pelas pessoas que convivem proximamente. Algumas vezes, a união extática acontece com os olhos abertos, o corpo esfria e empalidece como morta. O aspecto geral é de que a alma abandonou o corpo, e isso é largamente narrado em várias histórias de santos. Entre eles, São Filipe Néri, São Francisco e São José Cupertino. São Alexandre Sauli não podia celebrar a missa sozinho, pois entrava em êxtase com tal frequência, que precisava que o ajudante lhe mostrasse em que ponto se encontrava da celebração.

Embora morto para o mundo, o cristão se encontra bem vivo em Deus. Em muitos casos, o santo só saía do êxtase por ordem de um superior, não importando o quanto gritassem ou sacudissem o seu corpo. Espiritualmente, a oração de união extática é a oportunidade para que Deus revele grandes coisas àqueles que conseguiram um grau tão grande de união. Assim, Santa Teresa narra que são nas sextas moradas que se recebem instruções, visões, locuções interiores e exteriores. Visões intelectuais, que são aquelas visões que não se utilizam os sentidos corporais, arroubamentos e “raptos” ou vôos de espírito também são comuns aqui.

O grande marco nas sextas moradas, no entanto, é o que ficou conhecido como desposório espiritual. Jesus Cristo, em uma visita à alma, deixa claro que quer se unir a esta, aceitando-a como esposa. Esse desposório é o compromisso de que ocorrerá a união plena ou matrimônio nas sétimas moradas. Ou seja, equivale a um casamento sem ainda existir a coabitação. Até aqui, a alma viveu a fase conformativa da via unitiva. Deus realizava os últimos retoques para que ela se tornasse formalmente apta a se unir com Ele. A partir do desposório espiritual, começa a fase transformativa da via unitiva. Jesus irá transformar a alma, para que possa ocorrer a união perfeita das sétimas moradas.

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Grandes trabalhos esperam a alma

Nem tudo, no entanto, se resumem às delícias nas sextas moradas. Santa Teresa alerta que o desejo de que ocorra a união plena aumenta, mas Deus se nega um pouco. Veremos essa “negação” de Deus no próximo artigo com a noite escura da alma.

Ela também deixa claro que se inicia um período de grandes provações interiores e exteriores. À maledicência dos inimigos, junta-se a maledicência também dos amigos. Enfermidades gravíssimas debilitam o corpo e grandes sofrimentos interiores vem se juntar aos exteriores.

O esposo prometido, por vezes, apresenta-se, toca a alma produzindo uma chama de amor e depois parte, deixando-a sem nada. A graça transborda no interior velozmente, mas não provoca nenhum deleite, mas sim o conhecimento de nossa miséria e pequenez. E a extrema conformação do entendimento com a vontade de Deus provoca uma total incapacidade para lidar e organizar os pensamentos cotidianos. Isso permanece mesmo nas sétimas moradas; e Santa Teresa narra, no início do Castelo Interior, que estava já há três meses com um intenso zumbido na cabeça que a fazia incapaz de se concentrar e escrever. Escrevia “o castelo” por pura obediência.

Para esclarecer melhor esse ponto, podemos dizer que o dom do Espírito Santo possui uma atuação positiva e uma atuação negativa. Assim, o dom de ciência atua negativamente quando nos faz perceber o quanto o mundo é ilusório e nos engana, afastando-nos do espiritual e nos lançando ao material. Inversamente, atua positivamente aos nos mostrar a ordenação do mundo e sua beleza como fruto da presença e projeto de Deus. Do mesmo modo, o dom de entendimento e o dom de sabedoria, se por um lado nos permitem entender e saborear as coisas de Deus, por outro, podem nos deixar incapazes de raciocinar, memorizar ou mesmo suportar as coisas do mundo, tornando-as extremamente pesadas.

Como alerta, e já explicitado no artigo anterior, as locuções interiores e exteriores, visões e demais fenômenos físicos, carregam uma grande possibilidade de enganação por parte do demônio. Santa Teresa explica, nas sextas moradas, como reconhecer quando isso vem de Deus ou não, mas, seguimos aqui, a orientação de São João da Cruz de não se ocupar de forma alguma com isso. Ademais, as visões ou palavras, vindas ou não de Deus, fazem com que a alma, frequentemente, caia em erro ao formar as suas conclusões sobre o que viu ou ouviu. Ater-se a isso é como tentar pegar o ar com a mão (2 Subida, XIX).

No próximo artigo, encerraremos as anotações sobre as sextas moradas explicando a última das purificações da alma, antes da união plena com Deus nas sétimas moradas: a noite escura da alma.