Vida Espiritual

Deus se ausenta nas quintas moradas?

Como identificar a presença de Deus nas quintas moradas

A vida espiritual pode ser descrita como um contínuo despojar-se de si mesmo para que seja possível, aos poucos, revestir-se de Deus (Lc 13,44). Se, nas três primeiras moradas, esse trabalho é ativo e pertence, prioritariamente, ao homem se libertar de tudo que não leva a Deus, nas moradas mais profundas isso só pode ser realizado por Ele. De fato, a via unitiva passa por duas fases distintas: uma conformativa (quartas e quintas moradas) e outra transformativa (sextas e sétimas moradas). Na conformativa, o Espírito Santo molda a alma à semelhança de Cristo; na transformativa, a alma, unida a Cristo de um modo novo, é transformada até a união plena com Deus.

Nos três livros que compõem a Subida do Monte Carmelo, São João da Cruz descreve esse processo de purificação como “noites”. Basicamente, existem duas grandes noites: a primeira noite, que visa a purificação do sensitivo da alma; e a segunda noite, que visa a purificação das faculdades espirituais. A primeira noite passa por uma purificação ativa, executada pelo homem, e uma purificação passiva, feita por Deus. A segunda noite é somente passiva, pois atua onde nenhum ser humano pode alcançar. Essa segunda noite, última e estarrecedora purificação espiritual, trataremos no final das sextas moradas. Essa última noite é a que verdadeiramente se chama noite escura da alma.

Deus se ausenta nas quintas moradas

Foto Ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

Examinemos a primeira noite: São João a divide em crepúsculo, meia-noite e pré-amanhecer. O crepúsculo é um período ativo, os outros dois, passivos. Por isso, a primeira parte, ou crepúsculo, examinamos no artigo “São João da Cruz e as terceiras moradas” e tratam da purificação ativa dos sentidos em busca da entrada na via unitiva. Por ser purificação ativa, situam-se na via ascética. No entanto, a evolução desta noite durante a vida espiritual é que provoca a chegada das quartas moradas, seu aprofundamento passivo ou a chegada da “meia-noite” é um dos sinais da passagem para as quintas moradas das quais tratamos aqui.

A grosso modo, podemos dizer que as quartas moradas são a plenitude do crepúsculo da primeira grande noite, às quintas moradas compõem a meia-noite e às sextas moradas são, ao mesmo tempo, o pré-amanhecer no seu início e toda a segunda grande noite, ou noite escura da alma, no seu final.

Deus se esconde?

É importante notar que, durante o desenrolar da vida espiritual, existem vários momentos em que Deus parece sumir ou se esconder. Isso não quer dizer uma noite espiritual conforme vemos ser próprio das quintas moradas.

Assim, os que vivem em pecado mortal ou mesmo aqueles que os cometem “de vez em quando”, e não buscam a confissão, vivem em completa alienação de Deus por vontade própria. São os propagadores de sua própria noite. Decisão terrível que desembocará numa completa ausência de Deus, na noite interminável do inferno. Essa noite que, nesta vida, é somente um frenesi constante, perdido no redemoinho de suas próprias paixões, vivida em autorreferência alienante, na eternidade se converterá numa ânsia absurda e intensa pelo Deus que não quiseram alcançar quando este estava acessível.

Os que se situam nas primeiras moradas da vida espiritual, por sua própria tibieza e acídia, provocam também uma ausência de Deus em suas vidas. Na realidade, Deus se encontra presente devido ao “estado de graça” conquistado, mas a alma se encontra “cega e surda” à sua presença, como bem exemplifica Santa Teresa. Essa noite intermitente onde, por vezes e por pura bondade, Deus rompe essa dificuldade da alma para fazê-la perseverar ao seu encontro, causa a sensação de que Deus é próximo e distante ao mesmo tempo. Assim, a grande dificuldade em encontrar e permanecer na presença de Deus é mais fruto da acídia, a preguiça espiritual, do que de uma purificação propriamente dita.

Nas segundas e terceiras moradas, onde o cristão tem forças para buscar Deus, Ele, por vezes, esconde-se para provocar a busca da alma por Si. Esse fluir e refluir, tratado no artigo “o que são as terceiras moradas”, é a dinâmica do Espírito Santo, que estimula a ação e desaparece para vê-la executada. Entra aí a primeira noite de purificação ativa dos sentidos.

As quartas moradas recebem os auxílios divinos para a purificação. Concretiza-se, assim, a passividade da alma em relação às iniciativas de Deus. A alma corresponde às iniciativas, mas não as provoca. Como é o crepúsculo que se desenvolve, a purificação passiva é uma continuação da purificação ativa, buscada intensamente pela alma. Mais do que uma ausência de Deus, é tomada como uma contribuição para o desembaraçar-se das coisas terrenas. Como a contemplação começa a acontecer nas quartas moradas, essa purificação, além de querida, produz um efeito maravilhoso de união cada vez mais intenso com Deus. É vista, portanto, não como castigo, mas como prêmio.

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A noite espiritual das quintas moradas

Podemos dizer que a noite purificadora nas quintas moradas é causada por uma atualização no modo com que Deus trata a alma. Utilizando-se o caminho até aqui traçado, lembramos que, durante a fase ascética, a alma se desvencilhou das coisas da terra para poder se concentrar nas coisas do céu. Desembaraçada de pecados, vícios e paixões, pôde utilizar todas suas faculdades humanas e sensíveis para ir ao encontro de Deus. Inteligência, memória e vontade se dirigem ao alto sem estorvos.

Com a chegada das quartas moradas, o dom de sabedoria e a virtude da caridade plenificada provocam um imenso deleite nas faculdades sensíveis. Deus se derrama, através da missão do Espírito Santo, causando a contemplação. Passa, então, a conformar o entendimento, a memória e a vontade às três virtudes teologais.

Nas quintas moradas, essa conformação chegada ao máximo, provoca a completa escuridão da meia-noite. O espiritual (virtudes teologais), ao assumir o comando do sensível (faculdades), afasta-a de tudo que é conhecido e experimentado, não deixando nada no seu lugar. É por isso que São João da Cruz sintetiza esse caminho também com a expressão “dar tudo pelo tudo”.

Na prática, essa noite das quintas moradas traduz-se numa extrema secura sensível. Deus eleva todos os bens e forças do sentido para o espírito. Como os sentidos não podem apreender o que é do espírito, ficam vazios. Se não existe orientação espiritual, instaura-se a confusão. Afinal, a alma não consegue mais operar do modo que operava antes na vida espiritual. Por vezes, não consegue estudar, não consegue reter na memória o que aprende, perde a vontade de se aplicar à oração e às coisas espirituais. Tem a sensação, deste modo, que não avança na vida espiritual e que talvez comece a regredir. Há aqui grande perigo, e Santa Teresa alerta que a queda daqueles que se encontravam nas quintas moradas pode ser grande e devastadora.

Se os sentidos não foram bem purificados ativamente pela alma, o demônio pode intervir com eficiência. Sem controle sobre a parte espiritual, ele pode agir sobre os sentidos e se aproveitar do momento de vazio em que eles se encontram para produzir imagens, sensações, lembranças, revelações, sentimentos “espirituais” e até locuções interiores e exteriores. Devido ao risco da alma se perder, e porque, de fato, nada disso contribui efetivamente para o crescimento espiritual, São João da Cruz ordena para que ninguém se atenha a nada disso, buscando manter a solidão e desnudez espiritual. Não se deve pretender ter “manifestações” e muito menos as desejar, venham ou não de Deus (2 Subida, XXIII).

Nos finais das quintas moradas, experimenta-se, portanto, uma certa ausência de Deus. O beato Maria-Eugênio do Menino Jesus, na sua obra Quero Ver a Deus, diz que “doravante, a atividade das potências sensíveis não é senão desordem e inutilidade experimentadas na tristeza e no cansaço.” Deus opera ativamente no espírito, mas os sentidos ainda não estão adaptados para reconhecer esse trabalho de Deus, e “irão, portanto, conhecer a agitação impotente e o fastio doloroso até que, purificadas e tornadas aptas por meio deste sofrimento, possam participar, elas mesmas, do festim divino. Feita a adaptação, a noite do sentido estará terminada.”

Colocada sobre esse ângulo, essa noite das quintas moradas é uma graça inestimável que prepara a alma para grandes coisas. Somente, aparentemente, é produtora de sofrimentos e angústias, pois afeta a percepção dos sentidos e desinstala a alma de tudo que construiu até aqui. No entanto, o cuidado é necessário, pois a angústia pode se instalar por causa da lembrança das saborosas experiências com Deus vividas até então e, com ela, vir a inquietação. A inquietação é o primeiro modo de ataque do demônio e, colocar-se por si só nesse estado, é abrir-lhe a porta.

Por último, como reconhecer que não se rolou montanha abaixo na vida espiritual ao experimentar tamanha solidão e vazio nas quintas moradas? Embora tudo o que se sabia, até então, pelos sentidos falhem, a união com Deus se tornou mais forte e pode ser reconhecida. As virtudes, necessariamente, tem que estar sendo vividas e colocadas em prática de maneira mais fácil que anteriormente. Isso porque essa união íntima com Deus causa um aumento das virtudes morais infusas. A vivência das virtudes é o modo mais seguro de se determinar uma vida de autêntica santidade. São Francisco de Sales, chamado a examinar se determinada pessoa realmente entrava em êxtase durante suas orações ou era vítima de alguma doença mental, sempre perguntava pelas virtudes. Não existe intensa e verdadeira vida interior, sem manifestação externa das virtudes.

Assim, a vivência das virtudes (mais intensas e prontas que antes) e a ausência de pecado mortal, são sinais de que Deus trabalha mais fundo na alma, preparando-a para o desposório espiritual das sextas moradas. Este será o tema do nosso próximo artigo desta série Caminho Espiritual e as Moradas.