Santificação

Compreenda como é feita a oração nas terceiras moradas

Vida de oração nas terceiras moradas

As terceiras moradas da vida espiritual vão muito além de uma simples continuação das segundas moradas e da via iluminativa. Sem dúvida, tudo que foi explanado sobre as segundas moradas deve ser levado ao máximo, mas ainda assim, não será suficiente para o avanço rumo às moradas mais interiores.

Como vimos no artigo anterior, São João da Cruz nos revela que existe uma nova forma de renúncia, um completo despojamento de si mesmo que deve, obrigatoriamente, iniciar-se nessas moradas. Esse “desnudamento” é mais sensível na vida de oração, e é sobre isso que trataremos neste artigo.

Compreenda como é feita a oração nas terceiras moradas

Foto Ilustrativa: Wesley Almeida/cancaonova.com

É preciso, entretanto, fazermos um alerta antes de continuarmos: pouco a pouco, ficará evidente que esse organismo chamado de graça habitual ou santificante promove inúmeras alterações no nosso ser à medida que se desenvolve. O caminho espiritual de santificação não é somente um aprendizado intelectual, uma nova forma de conhecimento teológico para aumentar nossa cultura. É o Espírito Santo agindo, modificando e implementando uma nova forma de existir, até o ponto em que possamos reconhecer o Cristo vivendo plenamente em nós (Gl 2,20).

Investir, portanto, numa vida de oração e numa tentativa de maior contato com Deus, enquanto se mantém hábitos e pecados graves, é uma monstruosidade. Verdadeira deformidade de caráter que irá se refletir numa existência também deformada. O modelo desse tipo de conduta é Judas Iscariotes, que acreditava ser possível conciliar a vida de apóstolo e de ladrão (Jo 12,6). Os que vivem o desejo de se santificar, embora lutando para que fosse diferente, mas ainda assim cometem pecados mortais, precisam se concentrar no caminho das primeiras moradas, e só seguir adiante quando conseguirem se manter livre do pecado grave. Embora seja válido conhecer intelectualmente o caminho todo a ser percorrido, pois isso ajuda a se direcionar, é fundamental preservar a coerência de quem é e onde está.

O terceiro grau de oração: oração afetiva

Já vimos que esta série Caminho Espiritual e as Moradas utiliza-se de dois balizadores para explicar a trajetória que vai desde a conversão até a união plena com Deus. Um deles são as sete moradas do castelo interior da alma; o outro os nove graus de oração. Embora comecem e terminem no mesmo lugar, a divisão interna é um pouco diferente e os graus de oração estão sendo utilizados para esclarecer com mais precisão o que acontece em cada morada. Afinal, como deixou claro Santa Teresa de Jesus, o que promove o crescimento espiritual é a reflexão e a oração.

É próprio da via iluminativa (segundas e terceiras moradas) o desenvolvimento da segunda fase da oração meditativa. À medida que lemos, estudamos, pensamos sobre as Escrituras, Deus e as coisas do Alto, novas iluminações de são apresentadas. O estudo e a oração com as Sagradas Escrituras ficam mais fáceis, com muito mais frutos, e começa-se a ter uma verdadeira experiência com Cristo. Como vimos no artigo “Como progredir nas segundas moradas”, isso é promovido pelo dom de inteligência ou entendimento, e deve ser utilizado para aumentar o Amor pelo Filho de Deus encarnado. Esse amor, desejo de estar com Ele, extremo gosto e deleite na oração, é o terceiro grau de oração se manifestando: a oração afetiva.

Como dissemos anteriormente, a oração afetiva deve ser buscada e promovida na via iluminativa. Essa oração é a primeira de transição entre a oração natural e a sobrenatural. Nesse tipo de oração, existe um esforço humano para ligar-se a Deus, que é correspondido e depois mantido pelo próprio Senhor. Santa Joana de Chantal dá uma receita simples para buscar esse grau de oração: em primeiro lugar, colocar-se diante de Deus. Depois, não se deter voluntariamente nas distrações que vêm à mente. Em seguida, sem esforço, com suavidade, repetir palavras de submissão, abandono, confiança e amor à vontade divina. Ficar atento para que, quando o afeto for movido, não multiplicar inutilmente as palavras.

São Francisco de Sales acrescenta o aviso de que não importa a forma ou método de oração que se utiliza, desde que seja para despertar o Amor a Deus. Ou seja, como vimos com São Pedro de Alcântara em outro artigo, a oração meditativa é somente uma preparação para aquecer o coração e despertar o desejo de Deus e o amor a Ele. Tão logo chegue à oração afetiva, deve-se mergulhar nela, esquecendo-se da meditação. São Francisco de Sales ainda utiliza uma imagem bem viva para isso: quando se começar a correr, o melhor é abandonar as muletas.

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O quarto grau de oração: oração de simplicidade

Um grande sinal de que a oração afetiva quer evoluir para o próximo grau de oração é a impossibilidade de meditar ou discorrer com palavras na oração. Só se consegue estar na presença de Deus, não é possível falar com Ele, mas também não tem vontade de se dedicar a outros pensamentos. Esse é um sinal de que a vida mística, ainda incipiente, está se iniciando. O Espírito Santo turva o entendimento, seca o apego do coração a outras coisas e prende a vontade, preparando-nos para sermos d’Ele completamente.

Esse desejo de Deus, essa presença que aquece o coração e faz com que se deseje estar com Ele, começa a se manifestar cada vez mais rápido na oração, até o ponto em que surge mesmo antes de se meditar sobre algum assunto.

Erra quem insiste em “terminar o capítulo”, “completar o terço” ou ir até o fim na prática espiritual que se iniciou. O próprio Deus deixa-se tocar e nos toca, é o momento de deixá-Lo agir livremente. Nesses momentos, o Espírito Santo realiza grandes mudanças na alma, fortalecendo e infundindo virtudes e dons. Que grande desperdício não O deixar atuar, só porque não se entende o que está acontecendo.

Tudo isso é um sinal de que as terceiras moradas estão chegando ao fim, e começa-se a manifestar o quarto grau de oração, a chamada “simplicidade” ou “simples vista amorosa”. Elevada pela oração afetiva, a alma já não quer mais pensar ou falar com Deus, mas se alegra em permanecer em silêncio na sua presença e em união com ele.

Nesse segundo grau de transição para a oração de união mística, Deus começa a ensinar a sua paz interior, o sossego e calma das potências enquanto exerce o domínio completo sobre as paixões. Consegue-se estar a sós com Ele e ser somente d’Ele. A oração de simplicidade faz com que, nos breves momentos de oração com o Senhor, esqueça-se dos trabalhos, negócios e perturbações do mundo.

São três os sinais principais de que essa oração de simplicidade está sendo vivida. Primeiro, embora exista uma dificuldade para meditar as coisas de Deus, o cristão que a vive também não está distraído pensando em outras coisas. Segundo, mesmo as distrações involuntárias causam grande tristeza, pois se sente que perdeu o foco do que é realmente importante. Do mesmo modo, as conversas que não são espirituais e o excessivo trato com o mundo e as pessoas causam um grande desgosto, pois parece que está roubando um tempo precioso que deveria ser dedicado a Deus e ao recolhimento para estar com Ele. Terceiro e principal sinal deste tipo de oração, é que existe um atrativo constante para se estar quieto com um só sentimento ou pensamento que impressiona a alma ou em permanecer em completo silêncio perante Deus, principalmente diante do Santíssimo Sacramento.

Aqui, a orientação faz muita falta. O cristão que se eleva a esse grau de oração tem a sensação de que nada faz e de que perde seu tempo. Acostumados às orações discursivas e sensíveis (vocal, mental e afetiva), cobra-se de uma atitude mais “ativa” e “produtiva” na capela. É preciso notar que, se sai deste estado de estar em silêncio na presença de Deus, acaba se dissipando e se perturbando, não ficando mais fervoroso, pelo contrário. Deve-se notar também que, após esse estado de oração, saímos mais dispostos para as virtudes e mais revigorados do que se tivéssemos praticado a oração mental.

Na oração de simplicidade, é Deus quem começa a gritar para a alma: “cessai, e vede que eu sou Deus!” (Sl 46,11). É o início da passagem da oração para a contemplação, e São João da Cruz chama este estado de “notícia (ou advertência) geral e amorosa de Deus” (Subida-II, XIII). Existe uma atenção amorosa (oração afetiva intensa), mas sem uma particular consideração ou reflexão sobre alguma coisa. Sente-se intensa paz interior, quietação, descanso, sem atos e exercícios voluntários das potências do entendimento, da memória e da vontade. Segundo São João da Cruz, está-se deixando a via da meditação e sentido para se ingressar na via da contemplação e do espírito. Em sua metodologia, este é o início da segunda noite, a noite do Espírito.

No próximo artigo, veremos como a parábola das virgens prudentes nos ajudará a agregar as ações necessárias nas terceiras moradas, conforme vimos nos artigos anteriores. Ela também nos mostra como Deus nos levará para as quartas moradas, se Ele assim o desejar e se estivermos prontos quando Ele passar.