Vontade de Deus

O caminho de santidade no matrimônio

Os grandes místicos nos ensinam que há duas condutas que contribuem de maneira determinante para se progredir na perfeição, uma muito semelhante à outra: a obediência e o aniquilamento da vontade. Não é à toa que “autoridade e submissão” é um dos princípios de vida para nós, membros da Comunidade Canção Nova, pois somos forjados na santidade quando obedecemos, quando submetemos o nosso querer ao querer de Deus, ainda que isso se expresse pela vontade aparentemente injusta de um irmão que exerce a autoridade naquele momento. Como nos ensina o Mons. Jonas Abib, somos convidados a imitar Aquele que viveu a pobreza na sua plenitude, Jesus, que “não apenas despojou-se, mas despojou-se de si mesmo, e não viveu para si, mas para o Pai, para os outros e para os desígnios do Pai. Ele não fazia a Sua vontade, mas a vontade do pai(…). E foi até as últimas consequências da Sua obediência, numa entrega total”1.

Os santos nos ensinam que a obediência é mais agradável a Deus do que qualquer iniciativa desobediente. São Josemaria Escrivá ensina que “nos trabalhos de apostolado, não há desobediência pequena2” e Santa Faustina repete muitas vezes em seu diário ensinamentos como esse, do próprio Jesus:

Receberás maior recompensa pela tua obediência e subordinação ao confessor do que pelas próprias práticas em que te exercitares. Minha filha, deves saber e proceder de acordo com isto: qualquer coisa, ainda que a mais insignificante, se tiver o selo da obediência do Meu representante – é agradável e grande aos Meus olhos3.

O caminho de santidade no matrimônio

Foto Ilustrativa: nortonrsx by GettyImages / cancaonova.com

Aniquilar as nossas vontades

É, portanto, bastante simples o caminho que leva à perfeição: basta submeter a própria vontade a Deus. Claro está que ser simples não implica que seja fácil. Somos orgulhosos e jamais consentiremos em aniquilar nossa vontade às custas do nosso próprio esforço, mas com o auxílio da graça, por meio das purificações e mortificações diárias. É um trabalho para a vida toda, mas o que quero dizer aqui é que há um norte bem claro, um parâmetro infalível para não errar: se há um conflito entre a minha vontade e a vontade daquele que exerce autoridade sobre mim, seja o coordenador da minha casa, meu formador, meu chefe de setor ou o Conselho, submeter-me por amor a Cristo é o caminho certo para crescer na perfeição. Isso não significa que as autoridades sejam infalíveis e que você nunca esteja certo no seu querer. A questão aqui, apontam os santos, é simplesmente a decisão de submeter a própria vontade por amor a Cristo. É isso que importa, porque, como disse Jesus a Santa Faustina, o sacrifício da vontade é “um sacrifício perfeito de oblação”, pois “nenhum outro sacrifício pode se comparar a esse4” .

A situação é diferente dentro de um matrimônio

Contudo, para aqueles que são casados, o caminho da obediência e do aniquilamento da vontade não é traçado de forma tão simples e clara como para aqueles que vivem em outros estados de vida. Veja bem: um solteiro, um celibatário ou um sacerdote podem decidir, intimamente, que doravante jamais questionarão coisa alguma e terão como única preocupação obedecer e submeter a própria vontade a Deus. Certamente eles sofrerão injustiças e humilhações, mas estarão seguros de que avançarão incontinenti rumo à perfeição, pois estão se fazendo pobres e obedientes como Jesus, a quem todos devemos imitar. Poderíamos nós, casados, tomar semelhante resolução e termos a mesma segurança de que colheríamos somente frutos doces de santidade? Jamais!

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A esposa tem sofrido com o silêncio e a indiferença do esposo. As conversas são sempre monólogos, porque só ela fala, tenta resolver os problemas, enquanto ele permanece no seu canto, alheio a tudo. Por muito tempo ela experimentou esquecer a própria vontade, e nem falar mais do assunto, apenas rezar para ver se Deus toca o coração do esposo. Ela tem percebido, contudo, que o carinho, a ternura entre os dois está morrendo, porque seus corações têm se distanciado. Ela precisa tomar uma iniciativa, conversar muito francamente com seu esposo e não aceitar que essa situação perdure. Precisam, juntos, trilhar esse caminho, mas é necessário partir dessa “insatisfação” dela com o comportamento do esposo.

O esposo não suporta mais o modo áspero como a esposa lida com os filhos. Ela é irritadiça, rigorosa, exigente demais, quase militar no trato com as crianças. Ele tentou algumas vezes conversar com ela, mas resolveu silenciar, porque percebeu que talvez fosse ele que estivesse tentando impor à sua família a educação frouxa, sem disciplina que recebeu na infância. Ele vê, porém, que seus filhos estão se tornando arredios, ansiosos, tristes mesmo, e compreende que será preciso sentar-se com a esposa e conversar, confrontar suas duas visões distintas sobre educação e disciplina e quem sabe ajudá-la a enxergar os excessos que ela tem cometido.

A esposa lida há anos com o esposo que nunca consegue chegar pontualmente aos compromissos. Santa Missa, aniversários, cinema, seja o que for, ambos compartilham a fama de sempre se atrasarem. Ela deve aniquilar sua vontade e continuar se atrasando ou deve manifestar seu desejo de que seu esposo corrija esse comportamento inadequado para que ambos passem a chegar pontualmente aos compromissos?

Em conciliação com a vontade de Deus

São apenas três exemplos, mas quem é casado sabe muito bem quão complexo é o relacionamento dentro de um matrimônio. Enquanto na vida dos não casados há um duelo entre a vontade do homem velho e a vontade de Deus, no matrimônio entra uma terceira variável que complica tudo: são duas vontades humanas tentando se conciliar com a vontade de Deus. E quando os cônjuges são pessoas de oração, que buscam a santidade, parece que algumas situações se tornam ainda mais complicadas, porque, afinal, os dois conversam com Deus. Você e seu cônjuge talvez já tenham usado o seguinte argumento numa conversa, dessa ou de outra forma: “Quem lhe disse que nessa situação é a sua opinião que está de acordo com a vontade de Deus? Você já parou para pensar que eu também rezo e que Deus também fala comigo?”.

No matrimônio, aniquilar a própria vontade passa muitas vezes por não silenciar, “não deixar passar” e ajudar o outro a sair do erro, do comportamento que fere a harmonia conjugal. É complexo, é desafiador, é muitas vezes frustrante, mas é, para os cônjuges, o “novo caminho para a santificação e, por consequência, um percurso privilegiado para a santidade5”. Não seja isso, porém, uma desculpa para sempre impor seu querer, seus caprichos, sua vontade sobre seu cônjuge. O matrimônio não é um campeonato em que vence quem fala mais alto, mas uma união de almas para que se faça silêncio e se ouça a voz de Deus, que deve conduzir todas as coisas.

Referências:

1.Nossos Documentos – Nossos Princípios de Vida, 173-174.
2.Caminho, 614.
3.Diário de Santa Faustina, 933.
4.Idem, 923.
5.X Encontro Mundial das Famílias. Catequese “Chamados à Santidade”, do dia 23/06/2022.

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