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O eco do grande silêncio

Nesta Sexta-feira da Paixão – a Sexta-feira Santa –, pela celebração na liturgia, grande silêncio ecoa na Terra. Silêncio provocado por um grande grito: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Súplica do Redentor da humanidade, Jesus Cristo, o único Senhor. O eco deste grande silêncio rasgou o véu do templo de Jerusalém, depois que uma escuridão cobriu toda a Terra até as três horas da tarde. A escuridão que marca o princípio do mundo – deserto, vazio e coberto de trevas, com o silêncio do caos. E o Espírito Criador fecunda esse silêncio com a força da criação, desdobra tudo em vida.

O eco do grande silêncio que brota do peito do crucificado não é o grito de um Deus desesperado. É Deus emprestando a força recriadora de Sua voz para ecoar a dor lancinante que enjaula o coração do ser humano. A melodia é dolorosa. Um grito de desespero e de abandono profundo, que traduz o sofrimento da humanidade em cada tempo de sua história. As dores e os sofrimentos humanos manifestam-se, assim, pela voz de Deus compassivo, amoroso e redentor – som que irrompe com força para gerar o eco de um grande silêncio. A humanidade, enjaulada nos modos de viver que estão na contramão da vida plena, experimenta, no grito de Jesus, a possibilidade de iniciar novo ciclo. O grande silêncio com o seu eco é o reverso de toda a solidão desoladora, manifestando o caminho para fecundante escuta da voz do amor que redime e salva.

O eco do grande silêncio

Foto ilustrativa: RomoloTavani by Getty Images

Aprender com o silêncio da Sexta-feira Santa

Há uma escolha: escutar o eco do grande silêncio para transformar o coração humano e regenerar as suas fibras com amor. O grito de Jesus, que condensa a voz de toda humanidade, tem força de redenção e vida nova. Exigiu, nas minúcias de Sua engenharia, a encarnação do filho de Deus, que, mesmo sendo Deus, não se apegou à Sua condição divina. Jesus, esvaziando-se, inigualável na Sua arquitetura, fez-se obediente até à morte – e morte de cruz. Ao Seu nome, no céu e na terra, dobrem-se os joelhos, porque Ele é o Senhor, o Salvador.

A indisposição para aprender com o grande silêncio da Sexta-feira Santa significa perder a oportunidade para amorosa escuta de Deus – leva ao risco do fracasso. Isto porque sem o grande silêncio não é possível reconhecer a gramática da vida, superando a orgulhosa vaidade que adoece, as disputas, a mesquinhez e a indiferença. A falta de hábito para lidar com o silêncio precipita o conjunto da sociedade no frenesi de um barulho ensurdecedor que fere o ser humano. Prejudica ainda a necessária capacidade para escutar, amorosamente, os clamores de outras pessoas, até daquelas com quem se convive na mesma casa. Gera indiferença em relação aos pobres e vulneráveis.

O medo do silêncio, a falta de habilidade para vivenciá-lo, explica também a causa das solidões que enlouquecem. Elas não são tratadas com o remédio que está no próprio ato de se silenciar. Busca-se a cura nos venenos que entorpecem sensibilidades, paralisam avanços na solidariedade, petrificam percepções, robotizando mentes e corações. Assim, o ser humano perde a capacidade genuína de se encantar pela palavra fecundada no silêncio necessário à escuta, à meditação. E a humanidade fica imersa em uma pobreza materializada nos calvários de muitos sofrimentos, que se perpetuam em pandemias não tratadas, devastações não denunciadas, respostas humanitárias retardadas, insanidades políticas que desconsideram a vida – o bem maior, dom pleno que custa o sangue d’Aquele que morre no alto da cruz, vencedor da morte por Sua ressurreição.

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A morte que gerou nova vida

No mistério deste grande silêncio, a Sexta-feira da Paixão, está a fonte da grande experiência que pode recompor sensibilidades, produzir sabedoria, revitalizar a dimensão humanística de cada pessoa. Esse é o caminho para superar leituras e práticas perversas, devolver a serenidade interior necessária a todos, capacitando o ser humano para desenvolver discursos e narrativas construtivas, urgências deste tempo de destempero e de escassez de palavras recriadoras. As lições do grande silêncio da Sexta-feira Santa fortalecem instituições a serviço da vida e dos valores fundamentais, qualificam homens e mulheres na competência para dialogar e exercer a solidariedade.

Tudo começa e alcança fecundidade pelo exercício do silêncio que evita a multiplicação de palavras distantes dos propósitos cristãos: edificar e consolar cada pessoa. O ponto de partida é dominar o medo de se silenciar, debelando o hábito de muito falar, até para tentar remediar o irremediável. Contribui para cultivar a coragem desse exercício a preciosa indicação do escritor Thomas Merton: tomar sobre si o fardo da cruz de Cristo, isto é, a humildade, a pobreza, a obediência e a renúncia, e encontrar paz para a alma. O gesto de Jesus, diz o autor, é a única e a verdadeira revolução, porque todas as outras levam a mortes. Já a revolução de Jesus significa a morte que faz brotar nova vida, renovando todas as coisas. Tudo começa e fecunda-se pela atenção amorosa dada ao eco do grande silêncio desta Sexta-feira Santa, a Sexta-feira da Paixão.

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Dom Walmor Oliveira de Azevedo

O Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, é doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atual membro da Congregação para a Doutrina da Fé e da Congregação para as Igrejas Orientais. No Brasil, é bispo referencial para os fiéis católicos de Rito Oriental. http://www.arquidiocesebh.org.br