Virgem, esposa e mãe

A mulher eterna em Gertrude Von Le Fort e Edith Stein

Gertrud Von Le Fort, baronesa, escritora e teóloga, nasce, em 11 de outubro 1876, em Minden, na Prússia (parte do Império Alemão); e morre, em 1 de novembro 1971, em Oberstdorf, nos Alpes da Bavária, com 95 anos de idade. Apesar de ser quinze anos mais velha, ela e Edith Stein possuem muitas afinidades e vários interesses em comum.

Gertrude é filha de um coronel do exército prussiano, da baixa nobreza. É criada em seu castelo, em Mecklenburgo, ao norte de Berlin. Seus pais, muito cultos e piedosos, a instruem sobre a Bíblia, poesia e história. Desde nova, incentivada pelos pais, adquire o gosto de compor poemas e escrever dramas. Seu pai morre em 1902, quando Gertrude tinha 26 anos. Em seguida, ela e sua mãe viajam para muitos países, entre eles Roma, onde conhecem o Papa Pio X. Gertrude relata o impacto que teve ao encontrar-se com o Papa Pio X, pois percebe em seu rosto um “reflexo de santidade”1.

Em 1908, com 32 anos, Gertrude se inscreve como ouvinte na Universidade de Heidelberg, e lá assiste, por 10 anos, cursos de teologia, filosofia, história e arte. Torna-se aluna do famoso filósofo protestante Ernst Troeltsch, que possuía certa abertura ecumênica. Ele falece em 1923, e é publicando a edição da obra póstuma de Troeltsch, “Crença” (Glaubenslehre), que ela começa a sua carreira de escritora em 1925. No ano seguinte, Gertrude converte-se do protestantismo ao catolicismo, não vendo nesse ato uma ruptura com a Igreja luterana, mas percebendo-o como uma “experiência da unidade da fé (…), um retorno à igreja mãe”2.

Provavelmente, a conversão de Gertrude tem relação com a compreensão sobre o modo como o catolicismo concebe a natureza feminina, levada à sua mais alta perfeição na figura de Maria, Mãe de Deus, por meio do dogma da Imaculada Conceição, proclamado pelo Papa Pio IX em sua bula Ineffabilis Deus, de 8 de dezembro de 1854.

A mulher eterna em Gertrude Von Le Fort e Edith Stein

O Padre Przywara apresenta Gertrude a Edith

Gertrude Von Le Fort e Edith Stein se conhecem graças ao Padre Erich Przywara, que indica para ambas o estudo de Tomás de Aquino. Elas se encontram pessoalmente pela primeira vez em Munique, em abril de 1932, quando Edith, já docente em Münster, é convidada para dar um ciclo de conferências sobre a situação espiritual da mulher no tempo presente.

Gertrud relembra, em uma carta de 1962 a H. Molitor, a profunda impressão que lhe causou o seu primeiro encontro com Edith Stein pela sua piedade, simplicidade e modéstia encantadora, além de sua grande inteligência (FRANKEN KURZEN, 2013, p.7). Na mesma carta de 1962 a H. Molitor Gertrud Von Le Fort, relata que as profundas impressões causadas por Edith influenciaram o seu livro “A mulher eterna” (Die ewige Frau)2, pela visão essencial interior de mulher que teve nesse encontro: “Durante o trabalho, lembrei-me frequentemente da imagem espiritual de Edith Stein como aquela que tinha em mente na minha descrição de uma autêntica mulher cristã”3.

Em 1934, quando já eram amigas e se correspondiam regularmente, Gertrude publica “A mulher eterna”, uma de suas obras mais importantes. Nessa obra, ela pretende responder à análise modernista sobre o feminino (feminismo) com uma meditação profunda sobre a feminilidade, de um modo muito semelhante e, ao mesmo tempo, complementar ao das conferências sobre o papel e a vocação da mulher de Edith Stein4. Ambas sabiam da importância de se valorizar o papel das mulheres na sociedade, mas também se contrapunham às correntes do feminismo modernista radical, que afirmavam: ou uma identidade entre homens e mulheres, negando suas diferenças e especificidades, ou uma total diferença, propondo inclusive a superioridade das mulheres sobre os homens.

Maria: símbolo e essência da mulher

O tema da mulher “cheia de graça” como símbolo por excelência da feminilidade será trabalhado explicitamente por Gertrude Von Le Fort em seu livro de 1934, “A mulher eterna. Ela introduz o tema da “mulher eterna” articulando-o com o “papel simbólico da mulher”. O objetivo de sua obra é semelhante ao das conferências de Edith Stein: buscar a significação da “essência metafísica” da mulher em geral, seus “traços metafísicos e cósmicos, o mistério feminino como tal, sua situação religiosa, sua origem e seu fim em Deus”5.

Edith Stein concorda com a missão simbólica da mulher identificada por Gertrud Von Le Fort: ela é destinada a realizar-se especialmente no cultivo e vivência dos “valores religiosos”6. Mas isso não significa que existe uma espiritualidade especificamente feminina ou que a mulher tem uma superioridade religiosa sobre o homem. A essência metafísica da mulher não pode ser apropriada por nenhuma mulher concreta singular, mas ela indica o modo de ser feminino:

Trata-se da aptidão para formar a imagem de valores religiosos, de sua representação figurada, imagem e representação que são bem – conforme mostra o símbolo – de maneira precípua o quinhão e a tarefa da mulher1.

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Gertrud Von Le Fort fala da mulher eterna, contrapondo-a à mulher no tempo e à mulher fora do tempo. A mulher eterna, que serve de modelo para todas as mulheres, não importando em que estado de vida elas se encontram, é Maria, “Mãe do Redentor”, a “Mãe da graça divina”, proclamada no dogma da Imaculada conceição. Apesar de Maria ser a única “bendita entre todas as mulheres”, ela também é símbolo da feminilidade: “é ela que dá forma ao mistério metafísico da mulher e que o torna concebível”2. Representa a mulher antes da queda, ou seja, a imagem de mulher que Deus pensou para todas as mulheres que já existiram e existirão no mundo. Segundo a autora, o dogma da Imaculada foi proclamado no momento em que aparece na História da Igreja a destruição da imagem do ser humano (homem e mulher), anunciada pelo filósofo cristão Berdiaeff3 (LE FORT, 1969, p. 14), pois Maria nos revela o segredo da cooperação da criatura na redenção de toda a humanidade:

O Fiat de Maria revela, portanto, a especificidade do elemento religioso; ao mesmo tempo, porém, pois que é uma oferenda de si, revela a especificidade da mulher; dá também, definitivamente, a ideia universal do que pode ser a integração do religioso na humanidade. Maria não é, por conseguinte, apenas o objeto dum culto religioso: ela é, em si própria, esse elemento religioso que presta um culto a Deus, a valia de oferenda do mundo sob o aspecto nupcial da mulher.

Virgem, esposa e mãe

Gertrude, assim como Edith, via em Maria o modelo de mulher eterna, símbolo visível do mistério invisível da tríplice vocação da mulher: virgem, esposa e mãe, realizada tanto aos pés da cruz de seu Filho quanto na manhã de Pentecostes, quando foi visitada pela segunda vez pelo Espírito Santo:

A mãe de Deus torna-se a grande figura maternal da Igreja-mãe. Cada mulher é filha de Maria: existe, portanto, na Igreja, ao lado do sacerdócio e do testemunho do homem, portador de paternidade espiritual, a missão religiosa da mulher, uma forma de apostolado cristão que é uma missão materna4.

A mulher em sua luta contra o mal

Ao compreender que Maria nos revela, principalmente pelo dogma da Imaculada Conceição, o destino de toda mulher a cooperar com a redenção da humanidade, Gertrud Von Le Fort indica que cabe às mulheres o papel principal da luta contra o pecado e o Mal. Da mesma foram que o pecado de Eva se deu na esfera religiosa, na suspeita do amor de Deus, e depois no convencimento para que Adão fizesse o mesmo, é nessa mesma esfera que a mulher é chamada a atuar. Como é possível fazer isso? Pela análise da “mulher no tempo”, do modo como ela pode agir na história, a autora expõe a sua compreensão do papel redentor de toda mulher.

A missão espiritual da mulher no tempo, “no plano das realidades objetivas” 1, foi vista por muito tempo como vinculada à maternidade, especialmente ao passar os valores religiosos aos seus filhos e marido. Mas isso foi alterado no tempo da História, ou melhor, foi aprofundado pelo dogma da Imaculada Conceição. A virgindade passou a ser reconhecida como um valor em si mesmo, e a maternidade da mulher pôde ser vista como maternidade espiritual, conciliada com a virgindade como doação de si aos outros. Digo aprofundada, pois como doadora de valores aos filhos, “as mulheres entregam seus talentos à geração que sobe”2, cooperando com a salvação de muitos. Compete à mulher no tempo influenciar positivamente a cultura viva, definindo os seus limites “pela presença do mysterium Caritatis”3, definindo-os pelo respeito, que equivale a dizer que a mulher é chamada a viver “sob o véu”.

A mulher eterna

Gertrude não vê essa vida sob o véu como uma limitação da mulher, mas como a sua força, pois é desse modo que ela consegue dignificar a humanidade por meio do respeito aos valores essencial a toda pessoa, substituindo a vontade de dominar, inerente ao ser humano após a queda. Enaltece também a vida na humildade, combatendo o orgulho. Fazendo isso, a mulher coopera com esse Deus invisível, um Deus absolutamente silencioso e escondido, que “permanece como que anônimo em suas obras”4.

Edith e Gertrude nos convidam a olhar para a “mulher eterna”, que indica como é possível sair desse paradigma da modernidade ao compreender o verdadeiro papel da mulher em nosso tempo. É na cooperação com o outro que a mulher no tempo pode recuperar o seu papel de esposa e mãe, tal como foi pensado por Deus na eternidade. E esse papel se mostra especialmente em Maria: virgem, esposa e mãe, que se doou a Deus pela salvação de toda a humanidade, combatendo o Mal pela sua humildade, obediência e doação

Referências bibliográficas:

1.FRANKEN KURZEN, Clemens August. “La cercanía espiritual de Gertrud von le Fort con Edith Stein y Teresa de Ávila”. In: “Jornadas Diálogos: Literatura, Estética y Teología. La libertad del Espíritu”, V, 17-19 septiembre 2013. Universidad Católica Argentina. Facultad de Filosofía y Letras, Buenos Aires, p. 5. http://bibliotecadigital.uca.edu.ar/repositorio/ponencias/cercania-espiritual-gertrud-von-le-fort.pdf
2.FRANKEN KURZEN, 2013, p. 6.
3.FRANKEN KURZEN, 2013, p. 7.
4.LE FORT, Gertud von. “A mulher eterna”. Trad. José Geraldo Vieira. São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Ed. AGIR, 1969 (3ª edição).
5.FRANKEN KURZEN, 2013, p. 7.
6.ALES BELLO, Angela. “Tutta colpa di Eva: Antropologia e religione dal feminismo alla gender theory”. Roma, CastelvecchI – Lit Edizioni Srl, 2017, p. 19-30.
7.LE FORT, 1969, p. 12.
8.LE FORT, 1969, p. 8.
9.Ibidem.
10.LE FORT, 1969, p. 14.
11.LE FORT, 1969, p. 15.
12.LE FORT, 1969, p. 146.
13.LE FORT, 1969, p. 47.
14.LE FORT, 1969, p. 30.
15.LE FORT, 1969, p. 72.
16.LE FORT, 1969, p. 75.