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Como podemos agir diante das injustiças?

Entendimento do termo justiça1

O termo justiça vem do latim iustitia, proferimos que a justiça diz respeito à igualdade de todos os cidadãos. Portanto, a justiça não se refere somente em distribuir os bens que cabem a cada um, mas também de respeitar cada pessoa conforme sua dignidade e seu valor sagrado.

A Bíblia nos ensina que o direito nasce, em virtude da criação de Deus, pois os seres criados começam a ter qualquer coisa de seu. Deus entregou a terra aos homens para que tirassem dela o seu sustento, as suas vestimentas, os seus utensílios necessários à sua vida. Pela justiça, os bens de cada um são protegidos e respeitados.

No Antigo Testamento os homens virtuosos são chamados de homens “justos”. José aparece no Evangelho como “homem justo” (Mt 1,19). Jesus também olhava nesse mesmo sentido, quando proclamou: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, e por causa dela sofrem perseguições” (Mt 5,6-10), ou quando solicita, junto dos discípulos, para que se preocupem, antes de tudo, com o “reino de Deus e sua justiça” (Mt 6,33). Jesus conferiu à justiça lugar central para a vida cristã (Mt 5,6.10; 6,33). Para Paulo, Justo = Santo (Rm 5,19). Justiça é dom de Deus. A justiça está presente, mas como resposta à graça de Deus (Cl 4,1). De fato, hoje o bom e o justo entram cada vez mais em contato e se condicionam mutuamente. Justiça é vida de acordo com a vontade de Deus, em toda a sua amplitude, incluídas as relações inter-humanas (Lv 19,15).

Como podemos agir diante das injustiças?

Foto ilustrativa: mmg1design by Getty Images

A justiça e o amor cristão ao próximo

O dever de justiça se torna mais urgente quando o outro se encontra na indigência: doente, faminto, sedento, prisioneiro, triste, aflito, errante, ignorante, peregrino… (Mt 25,31-46).2

A justiça tem um sentido integral. Na realidade, não existe nenhum campo nem atividade onde ela não se faz necessária. Ela abarca todos os âmbitos e problemas sociais. Porém, de maneira especial, a justiça exige o reconhecimento da dignidade de toda pessoa humana e de seus direitos fundamentais, a exigência de igualdade, a responsabilidade pelo desenvolvimento e libertação, a construção da paz.

Hoje, a sociedade está marcada “pelo grande pecado da injustiça” (Sínodo “A justiça no mundo”, 1971). Ante essa situação, a justiça cobra um valor e um papel decisivos. É a resposta que esperam multidões indigentes de seres humanos que vivem em situações desumanas e injustas. Esta resposta conduz: à exigência de igualdade e participação, respeito à dignidade do homem e a seus direitos fundamentais, solidariedade, construção da paz, responsabilidade pelo desenvolvimento e a libertação.

O amor cristão ao próximo e a justiça não se separa. Porque o amor implica uma exigência absoluta de justiça, isto é, o reconhecimento da dignidade e dos direitos do próximo, pois, a justiça alcança sua plenitude interior somente no amor. Nesse sentido, compreenderemos, viveremos e poderemos anunciar a mensagem de Jesus: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e tudo mais vos será acrescentado” (Mt 6, 33).

Condição para permanecer em Deus

O amor a Deus se prolonga no amor ao próximo e é condição para permanecer em Deus. Aquele que permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele (cf. 1Jo 4,16). Quem vive um amor ao próximo ama a Deus (cf. Jo, 15), porém, não se permanece no amor de Cristo, sem produzir frutos na justiça e na caridade.

A caridade exige a prática da justiça, da partilha, da solidariedade como garantia da promoção do bem do outro. Por isto, não basta uma atitude individualista de justiça, é preciso também lutar contra toda forma de injustiça e que violenta a dignidade de tantas pessoas menos favorecidas.

No Novo Testamento a solidariedade para com os injustiçados está na linha da coerência de vida e na direção da justiça, da misericórdia e da caridade: “Como está escrito: Espalhou, deu aos pobres, a sua justiça subsiste para sempre. Aquele que dá a semente ao semeador e o pão para comer, vos dará rica sementeira e aumentará os frutos da vossa justiça. Assim, enriquecidos em todas as coisas, podereis exercer toda espécie de generosidade que, por nosso intermédio, será ocasião de agradecer a Deus. Realmente, o serviço desta obra de caridade não só provê as necessidades dos irmãos, mas é também uma abundante fonte de ações de graças a Deus” (2Cor 9, 9-12).

Nos documentos do magistério, surge com muita força o termo, “justiça social”, que expressa a preocupação pelos novos problemas sociais. Basicamente, a justiça social tem por objeto o bem comum; o sujeito de direitos é a sociedade, e os sujeitos de deveres os membros da comunidade. Como disse o Catecismo da Igreja Católica: “A sociedade assegura a justiça social quando realiza as condições que permitem às associações e a cada um alcançar o que lhes é devido segundo sua natureza e sua vocação. A justiça social está ligada ao bem comum e à autoridade”.3

Pecados contra a justiça

A desigualdade social entre milhares de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza, consequência do egoísmo humano, do consumismo e do acúmulo excessivo de bens, conduz às profundas injustiças na distribuição dos bens. Conforme o Catecismo, retomando o sétimo mandamento da Lei de Deus: “Não roubar”, afirma: deixar que multidões de pessoas vivam em condições de extrema pobreza, privadas, de fato, do exercício do direito de propriedade privada, constituem pecados contra a justiça.4 Conforme a Bíblia, injustiça contra os menos favorecidos acende a ira de Deus (cf. Am 2,6.7; 5,21ss; Pv 11,1; 14,19).

Como o Documento de Puebla assinala muito bem, é do pecado que “brotam todas as escravidões”, sendo ele a “raiz e fonte de toda opressão, injustiça e discriminação”.5 Pecados contra a justiça é todo tipo de corrupção, desvio de dinheiro público, afrontas contra a dignidade da pessoa humana, acúmulo excessivo de bens. Não basta o arrependimento e a confissão. Se lesamos o próximo tirando dele um bem material que lhe pertence ou mesmo ferindo sua dignidade, devemos, então, fazer o possível para devolver aquele bem, de modo a restabelecer a justiça e a dignidade ferida pelo nosso ato.

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Como podemos agir?

Precisamos lutar contra toda forma de injustiça. Esta luta acontece pela implantação dos princípios da igualdade, honestidade, solidariedade e fraternidade. Pela misericórdia, pois, como afirma Santo Tomás: “A misericórdia sem a justiça é fonte de dissolução; mas a justiça sem a misericórdia é crueldade”. 6 Para que a injustiça seja superada é preciso generosidade, ou seja, que o homem esteja disposto a dar coisas a que não é estritamente obrigado. Também é importante a restituição (re+instauração, re+estabelecimento, re+entrega), ou seja, o ato de devolver os bens tomados, a propriedade alheia e reparar os prejuízos injustamente causados.

O Papa São João Paulo II afirma magistralmente que o pecado da injustiça social recai sobre todos nós: “Uma situação – e de igual modo uma instituição, uma estrutura, uma sociedade – não é, de per si, sujeito de atos morais; por isto, não pode ser, em si mesma, boa ou má. No fundo de cada situação de pecado, porém, encontram-se sempre pessoas pecadoras”.7

A responsabilidade do pecado da injustiça social é partilhada quando aceitamos acriticamente as ideologias, os pré-conceitos, os comportamentos que descartam as pessoas pobres; quando reproduzimos em escala menor o que até se condena em escala maior, ou seja, quando aceitamos e praticamos “pequenos” atos de desonestidade; pelas omissões (indiferenças) pessoais ou de grupo, que influenciam e perpetuam as condições injustas e pecaminosas. Omissões de maior ou menor influência.

Afirma Libânio: “Não podemos viver como se os pecados históricos, os pecados das guerras, das torturas, da exploração calculada do pobre, da opressão de povo em relação ao povo, de classe em relação à classe, não nos dissessem respeito. São nossos pecados. Participamos neles seja pelo nosso silêncio, nossa inércia, nosso conformismo, nosso consentimento tácito, nossa aceitação fatalista, como pela nossa cooperação direta, reforçando a situação com decisões pessoais”.8 A indiferença é uma maneira de assumir.

É preciso deixar claro que a ruptura principal do pecado é com Deus, essa ruptura em nível de relacionamento interpessoal se expressa em: egoísmo, corrupção, hedonismo, exploração, comércio humano, orgulho, ambição, indiferença e superficialidade. Que produzem injustiça, dominação e violência.

Para o Papa São João Paulo II, “o estado de desigualdade entre os homens e os povos não só perdura, mas até aumenta. Sucede ainda nos nossos dias que, ao lado daqueles que são abastados e vivem na abundância, há outros que vivem na indigência, padecem a miséria e, muitas vezes, até morrem de fome. O número destes últimos atinge dezenas e centenas de milhões”.9

A proposta de Jesus fica mais clara quando se contrapõem os reinos deste mundo com o Reino de Deus. Quando os seres humanos reinam, contra Deus e seus planos, reinam a injustiça, a opressão, a discriminação, a violência, a guerra. Cristo quer reverter este processo, implantando a justiça, a fraternidade, a solidariedade, a paz.

É no confronto com a proposta do Reino que se percebe melhor o que é o pecado para Jesus. Diante d’Ele e da sua proposta ninguém pode ficar indiferente. Por isso mesmo, o estar desligado já é uma manifestação do pecado. Entretanto, o pecado revela toda sua força quando se coloca como oposição sistemática a esta nova realidade que Jesus veio implantar de amor e de justiça.

Referências:

1 Cf. COELHO, Mário Marcelo. Educar para as virtudes humanas. São Paulo: Canção Nova, 2013, p. 76ss.
2 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (Catechismus Catholicae Ecclesiae). 7ed., Petrópolis: Vozes, 1997, n. 2446.
3 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (Catechismus Catholicae Ecclesiae). 7ed., Petrópolis: Vozes, 1997, n. 1927.
4 Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA (Catechismus Catholicae Ecclesiae). 7ed., Petrópolis: Vozes, 1997, n. 2401-2458.
5 CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano. A Evangelização no presente e no futuro da América Latina, Conclusões da III Conferência Geral do episcopado Latino-Americano. 3ed., Puebla de Los Angeles, México, Paulinas, São Paulo 1979, n.186 e 517.
6 TOMÁS DE AQUINO. In Matheus. 5,2.
7 JOÃO PAULO II. Exortação apostólica “Reconciliação e Penitência”. Petrópolis: Vozes, 1984, n.16.
8 LIBÂNIO, J. B. Pecado e opção fundamental, Vozes, Petrópolis, 1975, p.101.
9 JOÃO PAULO II. Dives in misericórdia. São Paulo: Paulinas, 1998, n.11.

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