Caminho de conversão

Sem a graça de Deus, somos capazes do maior mal

Há alguns dias eu estava com minha filha mais nova nos braços, tentando fazê-la dormir. Ela tem oito meses e penso que a quarentena, com todas as mudanças que trouxe à rotina da nossa casa – as manhãs eram mais silenciosas, já que os três irmãos estavam na escola, por exemplo – atrapalharam seu relógio biológico do sono. Já passava da meia noite e nada. A casa estava silenciosa. As crianças em seus quartos, dormindo, a mãe na cama, descansando, e eu com ela na varanda do apartamento, testando posições e maneiras que a acalmassem, mas nada funcionava. Ela estava visivelmente cansada e reclamava disso, mas não pegava no sono. Ela tinha adormecido às oito e meia da noite, o que havia sido uma enorme surpresa para nós, que aproveitamos para colocar as crianças na cama mais cedo. Às nove, já estavam todos recolhidos e eu e minha esposa tínhamos até pensado em planos para aquela noite.

Pais de quatro filhos entenderão a preciosidade que representa uma noite assim. Entretanto, minutos depois ela acordou. A nossa esperança é que ela mamasse um pouco e fosse dormir, mas isso não aconteceu. Ela cochilava dois, três minutos e acordava, queria braço, não conseguia adormecer profundamente. Passamos três horas nos revezando nessa luta, minha esposa e eu, até chegarmos ao início dessa narrativa. E aqui transfiro o foco da minha filha, que não adormecia, para mim, que não conseguia fazê-la dormir.

Sem a graça de Deus, somos capazes do maior mal

Foto Ilustrativa: by Getty Images / KatarzynaBialasiewicz

Somos necessitados da graça de Deus

Eu estava cansado de um dia que começara às cinco da manhã e havia sido intenso. Frustrado por ter meus planos para aquela noite cancelados. Mas havia outro sentimento ali presente. Comecei a me perceber muito irritado, com raiva da minha filha. Por tudo que havia acontecido até ali, por ela não dormir, eu me via tendo impulsos maus. Ao invés de consolá-la com embalos gentis nos meus braços, por exemplo, vinha o desejo de sacudi-la com mais velocidade, só para irritá-la um pouco, como se fosse uma pequena vingança. Vi-me com vontade de colocá-la no chão e ir para o quarto, só para deixá-la chorar sozinha por um tempo.

Não, não maltratei a minha filha, mas o sentimento nasceu no meu peito por brevíssimos instantes e de imediato, enquanto a embalava, comecei a pedir: “Vem, Espírito Santo, vem, Espírito Santo”, e fiquei repetindo isso, repetindo, repetindo. Não vou dizer que um milagre aconteceu, que naquele momento senti uma brisa roçar o meu rosto e que meu coração se aqueceu, meus olhos romperam em lágrimas, toda a raiva se dissipou e eu passei a ser só amor. Não. Minha esposa, vendo que ela não dormia, veio até a sala, eu entreguei-lhe nossa filha e fui dormir.

Eu sou capaz de fazer qualquer mal

Antes de adormecer e pela manhã, ao acordar, aquele episódio não saía da minha mente, e me fez refletir muito sobre o quão miserável eu sou. Principalmente, levou-me a refletir algo que muitos de nós não temos coragem de admitir: eu sou capaz de qualquer mal.

Longe de Deus, não há mal que eu não seja capaz de fazer. Sou considerado por aqueles que me conhecem mais de perto como uma pessoa bastante paciente, tranquila e ponderada, e sou assim mesmo. Mas diante de uma circunstância específica, vi-me com muita raiva de minha filha, a ponto de partilhar com minha esposa no dia seguinte que nunca tinha sentido tanta raiva de alguém como na noite de ontem. E é óbvio que minha filha é total e absolutamente inocente nessa história, já que, aos oito meses, ela é incapaz de fazer o que quer que seja para intencionalmente irritar seus pais. Pus-me a pensar o seguinte: se diante de uma situação trivial como colocar minha amada filha para dormir eu fui capaz de sentir tanta raiva, imagine diante de uma situação realmente tensa e que
envolvesse alguém de quem eu não gostasse…

Mais uma vez tomei a consciência de que sou um miserável e de que não importam as qualidades que as pessoas veem em mim: sem a graça de Deus eu não sou nada, sou incapaz de só um ato, por mínimo que seja, de bondade. E essa não é uma verdade desanimadora. Pelo contrário, conduz-me à conversão, pois me ensina a depender inteiramente de Deus e não confiar em supostos méritos que eu acredite ter.

Imune ao pecado?

Quantas vezes nós nos deparamos com notícias de atos terríveis que são cometidos por pessoas comuns, como uma briga sem sentido no trânsito, por conta de uma ultrapassagem mal feita, que acaba com morte. Ou um pai ou mãe que espancam seu filho, um cônjuge que cai no adultério, um funcionário apanhado roubando seu patrão. Muitas vezes, vejo-me pensando: “Meu Deus, eu sei que jamais seria capaz de fazer uma coisa dessas”. Mas esse pensamento é enganador e me afasta do meu caminho de conversão, porque a partir do momento que eu me julgo “imune” a um ato de pecado, por mais bárbaro que ele seja, eu terei aberto uma porta perigosíssima, que me tornará imprudente em relação ao mal.

Não nos enganemos: não há mal que eu e você não sejamos capazes de fazer. Como nos ensina o Catecismo da nossa Igreja, a natureza humana está ferida nas suas próprias forças naturais, inclinada ao pecado, ao mal. O batismo apaga o pecado original, mas a concupiscência, a inclinação ao mal, permanece, o que convida o homem a um constante e árduo combate espiritual. Esse é um combate que vai durar até a morte – e deve ser assim. São Josemaria Escrivá escreveu algo que diz respeito exatamente à experiência que fiz algumas noites atrás: como nos comportar quando nos depararmos com a dura realidade do nosso pecado, a ponto de nos espantarmos com a nossa própria capacidade de fazer o mal?

“Digo-te em nome de Deus: não desesperes. Quando isso suceder – aliás, não é forçoso que suceda, nem será o habitual -, converte essa ocasião em motivo para te unires mais ao Senhor; porque Ele, que te escolheu como filho, não te há de abandonar: permite a prova, sim, mas para que ames mais e descubras com mais clareza a sua contínua proteção, o seu Amor”.

Não tenhamos medo de encarar nossas mais assustadoras misérias. Se queremos ser santos, isso é duro, mas é necessário. Como nos ensinou tão bem Santa Faustina, “quanto mais miserável me reconheço, sinto que tanto mais o oceano da misericórdia de Deus me envolve e me dá grande força e vigor.”

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