Deus e a Violência

A Bíblia está carregada de sangue e violência, não por causa da religião ou do seu Deus, mas do homem. Jesus aumenta o perdão até ao infinito. A violência só termina com a conversão do coração à paz, através do perdão. A História e a Palavra necessitam dos ensinamentos do Espírito Santo.

Queiramos ou não, gostemos ou não, a verdade é que os atos terroristas de 11 de Setembro contra os Estados Unidos da América do Norte são incontornáveis. Toda a comunicação social fala deles e deles depende. Até parece que o mundo parou diante das imagens daquelas duas torres a caírem como um simples baralho de cartas.
O símbolo do capitalismo americano desfez-se como quem brinca aos castelos de areia na praia. O pior é que naquelas torres trabalhavam milhares de pessoas e muitas delas desapareceram desta vida misturadas naquele cimento e ferro desfeitas em fogo, lágrimas e sangue: o fogo que as levou, as lágrimas e o sangue que as acompanharam.
A história foi abalada e ninguém sabe onde irá parar a escalada da violência e do terrorismo em nome de Deus.

Escrevo estas linhas no dia 7 de Outubro e acabo de ouvir e ver na TV que amanhã começará a “guerra” da chamada “civilização ocidental” contra as trevas diabólicas duma certa “civilização fundamentalista e fanática de milhares-milhões (?) de islamitas”.
Começou mal – muito mal – o novo século e o novo milénio. E começou mal, fundamentalmente, por causa da terra de Abraão, Isaac e Jacob, Moisés e Profetas, Jesus, José e Maria e os Apóstolos, e ainda por causa de Maomé que, segundo a lenda islâmica, subiu ao céu na cidade de Jerusalém.
A Jerusalém das nossas esperanças e messianismos continua a abalar o mundo.

Não há dúvida de que a Bíblia está carregada de sangue e violência, não por causa da religião ou do seu Deus, mas do homem.
O profeta Habacuc, que viveu a tragédia do exílio, interroga Deus: “Até quando, Senhor, pedirei socorro, sem que me escutes? Até quando clamarei: ‘Violência!’, sem que me salves?” (Hb 1, 2).

O grito do profeta é o nosso grito, crente e angustiado, de todos os dias: até quando, Senhor, a violência, a fome, a guerra, a injustiça, a iniquidade…? O ‘ad-anah’ (até quando) de Habacuc ressoa desde os primórdios bíblicos, a partir do homicídio de Caim contra Abel: “A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim” (Gn 4, 10). A “lei da vingança” ou de “talião” dos povos primitivos sobe da terra aos céus, de modo que Deus vê-se obrigado a proteger Caim com a declaração: “Não! Se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais” (Gn 4, 15).
E Lamec, o fundador da primeira cidade, diz às suas mulheres Ada e Cila: “Se Caim for vingado sete vezes, Lamec sê-lo-à setenta vezes sete” (Gn 4, 24).

A Bíblia descreve, a traços rápidos, a civilização da violência das cidades contra a civilização da paz dos nómadas do deserto. Embora Deus prefira o nómada e pastor Abel ao citadino Caim, não deixa que Caim seja morto a qualquer preço. Mas a escalada da violência e da morte faz parte integrante dos interesses citadinos de todos os Cains e Lamecs da humanidade.

Assim foi e assim será se os homens não se converterem ao evangelho do perdão de Jesus que responde à lei da vingança de Lamec das “setenta vezes sete” com a lei do perdão das mesmas setenta vezes sete”.
Pedro contenta-se com o perdão matemático de sete vezes, mas Jesus aumenta-o até ao infinito, que o mesmo é dizer setenta vezes sete (Mt 18, 22). Sem dúvida que Jesus coloca a fasquia muito alta, muito mais alta do que os arranha-céus da World Trade Center de Nova Yorque, mas é a única maneira de haver paz entre os homens.
Daí a razão de ser do Pai Nosso: “perdoa-nos as nossas ofensas, como nós perdoamos aos que nos ofenderam…” (Mt 6, 12). A escalada da violência da lei de talião dos Cains, Lamecs, talibãs, sejam eles judeus, ou cristãos, ou islâmicos, ou agnósticos, só termina com a conversão do coração à paz através do perdão. Assim o ensinou Jesus e assim o praticou: “Perdoai-lhes, ó Pai, porque não sabem o que fazem!” (Lc 23, 34).

Desde 1948 que judeus e árabes têm usado a lei de talião pela retaliação: uns com tanques e foguetões e outros com pedras e suicídios incendiários. Nenhuma diplomacia tem conseguido abafar a lei da justiça do “olho por olho e dente por dente”. Os árabes decidiram vingar-se dos oitocentos mil conacionais expulsos pelos judeus imediatamente após a tomada de posse da sua nova nação em 1948.
E grande parte do mundo árabe jurou vingança, agora refinada com o fundamentalismo fanático e religioso dos talibãs.
Será que a última palavra vai ser a palavra da retaliação e da justiça de talião ou da Palavra de Jesus sobre a lei do perdão e do amor?

A História vai continuar a ser a história das vinganças e das injustiças ou entrará na política do shalom do evangelho: “e paz na terra aos homens por Deus amados”? (Lc 2, 14).
Sem dúvida que não pode haver paz sem justiça. Por isso é que os árabes respondem à humanidade dizendo que as pedras e os actos dos kamikazes homicidas são um acto não de vingança mas de justiça, e os judeus contraatacam respondendo à mesma humanidade com a justiça da retaliação.

Pobre Deus que não pode prender nem os braços nem as pernas dos homens “por ele amados” para “dirigir os nossos passos no caminho da paz” (Lc 1, 79). Pobre Deus, que bem jurou: “De futuro, não amaldiçoarei mais a terra por causa do homem, pois as tendências do coração humano são más, desde a juventude, e não voltarei a castigar os seres vivos, como fiz” (Gn 8, 21).

É próprio da Bíblia do Antigo Testamento pôr Deus a falar de acordo com as culturas daqueles tempos. Lá está a guerra santa, abençoada por Deus, como uma instituição sagrada (Dt 20, 1-20).
Não foi Deus que fez a guerra dos judeus contra os cananeus dos tempos de Josué, Juízes, Saul, David e Salomão. Foram as circunstâncias sociais e políticas que determinaram a guerra santa dum povo sem eira nem beira, em busca duma terra. A conquista dessa terra transforma-se em reflexão religiosa e teológica. Por um processo de teologia etiológica (isto é, justificativa das acções do passado), os judeus encontram a mão do seu Deus, o Único, nessa conquista contra os politeísmos de então.

Eram os tempos em que a religião estava por cima dos direitos humanos, precisamente como aconteceu no dia 11 de Setembro com os ataques terroristas a Nova Yorque e a Washington e como os chefes dos talibãs não têm medo de declarar.
Trata-se duma guerra santa contra os infiéis americanos e seus aliados. O fundamentalismo alcorânico (ver no Corão 4, 76; 4, 88; 4, 93; 4, 94) não distingue entre cultura e religião, entre palavra escrita corânica e hermenêutica do seu significado histórico-cultural; entre história do passado e história do presente, entre o primado da pessoa e o primado da palavra literalista.

Para nós, cristãos, Jesus prometeu-nos o Espírito Santo que “nos ensinaria tudo”(Jo 14, 26).

Mesmo assim, também os cristãos tiveram o seu tempo de guerra santa contra mouros e judeus, e de guerra santa entre católicos e protestantes. Aliás, ainda há uns restos lá para os lados da Irlanda do Norte… É a História e a Palavra a necessitar dos ensinamentos do Espírito Santo, que passa pelo coração da mesma História e Palavra.

Fonte: Labat – Pe. Joaquim Carreira das Neves, O.F.M.