Crise da confissão ou crise do perdão?

Diz-se que Santo Agostinho, entre a sua conversão e a sua morte, nunca se confessou; e que S. João Bosco se confessava todos os dias. Quem tinha razão? Os dois, diria eu, pois cada qual viveu conforme à sua época.

Não me assusta a palavra «crise». É verdade que hoje há menos «confissões», mas não há menos necessidade de perdão e de reconciliação. As mudanças rápidas e profundas inevitavelmente teriam de provocar a queda de costumes e formas de práticas religiosas e sacramentais. Não se trata de perder ou ganhar, nem de estar ou não na moda. Na vida espiritual e sacramental existe algo que nunca anda ao sabor da moda: a misericórdia e o imenso amor de Deus pela humanidade frágil e pecadora. O homem sempre precisou de se confessar, desabafar, aconselhar, conversar, desculpabilizar-se e ser absolvido. Apesar da cantiga dizer que «nem às paredes confesso», o certo é que o comunicar e abrir-se ao outro é sempre uma terapêutica saudável e uma fonte de libertação.

Em termos de celebração do sacramento estamos muito melhor que antes. Basta lembrar os esquemas que o Ritual da Penitência nos apresenta. Não deixo, no entanto, de lamentar que, umas vezes por vontade das pessoas e outras vezes por negligência dos sacerdotes, se «façam confissões» muito mal feitas nas causas e nas formas. E, quando as coisas não são bem feitas, acabam por atraiçoar o verdadeiro sentido do sacramento.

O auge da confissão teve muito a ver com costumes que hoje não «agarram» nem perduram. Por exemplo: ninguém comungava sem se confessar; as devoções de indulgências, primeiros sábados, peregrinações e novenas não se faziam sem a confissão; a consciência opressora de ver pecado e perigo em tudo o que fosse matéria de sexualidade levava à confissão frequente; a direcção espiritual realizava-se quase exclusivamente no confessionário… A tudo isto acrescente-se que hoje já não se olha para o sacerdote como o «faz de tudo», ou seja, consultor, psicólogo, psicanalista, advogado…

Nas várias leituras e interpretações deste fenômeno, cada qual poderá levar a água ao seu moinho. Pode-se evocar a perda de consciência do pecado, a falta de moralidade, a figura do padre, a idéia de Deus «juiz», o esquecimento de Deus, a secularização, as atitudes alternativas, a presença do homem-sacerdote, a falta de exigência, etc. As formas, as estruturas, as imagens mudam, mas a fé e a bondade de Deus não mudam. O homem pode ser infiel, mas Deus permanece fiel.

Aqui não me interessam as questões laterais da confissão. Tanto me faz que a forma adoptada seja a antiga ou a moderna, a individual ou a comunitária, feita no confessionário ou noutro lugar. O que me importa é dizer que este sacramento tem o valor que sempre teve. Embora realizado na pós-modernidade e na globalização, o «coração de Deus» e os sinais visíveis do Seu amor, embora mutáveis, são sempre manifestação de misericórdia e perdão.

O sacramento do perdão é uma bem-aventurança produzida pela conversão e pela experiência de uma vida reconciliada. O sacramento não pode ser um ato celebrativo isolado; deve ser enquadrado numa dinâmica de vida. O sacramento não pode ser celebração de nada; deve celebrar algo que está a acontecer na vida da pessoa. O sacramento ou exprime algo real ou não significa nada. Torna-se necessário restabelecer o contato entre a experiência de vida e a celebração dos sacramentos. O que está hoje em crise é a capacidade e a educação de relacionar os ritos e os símbolos religiosos com experiências profundas que lhes dêem sentido.

A experiência humana que provoca a conversão é a fé. A fé é o acontecimento da experiência do encontro com Deus. Perante o pecado que é não-fé, rotura, desencontro, alheamento, voltar as costas, a fé é reconciliação, reencontro, presença. «Se a fé é o fundamento da penitência, é preciso orientar-se para uma penitência apoiada na fé. A penitência que não é causada pela fé, não serve para nada» (Anônimo do sec. XII).

O fim último da penitência consiste em amar intensamente a Deus. O amor é a primeira experiência vital do convertido. «Eu quero amor, misericórdia, e não sacrifícios» (Os 6, 4.6). A prova de que Deus nos ama está em que, sendo nós ainda pecadores, Cristo morreu pelos nossos pecados( Rm 5, 8). Converter-se é aceitar o amor que Deus nos tem. A experiência do amor de Deus capacita para amar e aceitar os outros. «Se não souberes amar-te a ti mesmo, não poderás amar verdadeiramente o outro» (Santo Agostinho). O amor de Deus que acolhe o pecador suscita o amor a si mesmo; vale a pena aceitar-se apesar destruído, miserável e desgraçado. Deus enviou o seu Filho para salvar, e não para condenar; para ir ao encontro dos que estão doentes e não dos sãos.

O amor que Deus oferece no encontro com o homem é a fonte da esperança e da confiança. A conversão é um movimento que reconhece o pecado próprio, mas em vez do desespero surge a esperança. Abrem-se novos horizontes e perspectivas à luz do perdão e da graça.

Pessoalmente passei pela crise das formas e rituais da confissão. Hoje confesso-me porque creio no amor misericordioso do Pai e porque sinto na esperança a vocação de ser uma nova criatura, redimida e renovada pelo perdão.

Julgo que há uma catequese e pregação nova a fazer. A realidade teologal é fundamental para que exista experiência cristã de renovação. As formas e os rituais, tal como as épocas do tempo, mudam e transformam-se; a essência, a experiência e a necessidade do perdão permanecem sempre, como a vontade de Deus em nos salvar.

Pe. Agostinho Leal, ocd.
Fonte: Agência Ecclesia