Vontades

Lidar com a frustração é parte inseparável da vida

Como lidar com a frustração? A Quaresma é tempo de oração, esmola e jejum, como bem sabemos. Esses três passos, tão vivamente indicados pela Igreja para esse tempo, têm um objetivo: visam a favorecer a nossa união com Deus, que não acontece sem a “reforma interior” mencionada por São Tomás de Aquino. Precisamos nos transformar pela renovação do nosso espírito, porque não podemos nos conformar com este mundo. Diz São Paulo na Carta aos Romanos, e o Doutor Angélico nos ajuda a compreender esta palavra: o pecado diminui em nós a faculdade de discernir o que devemos fazer para agradar a Deus, por isso precisamos empreender uma reforma do nosso homem interior, para, formando-nos de novo, recobrarmos a “integridade e excelência da razão que uma vez possuíramos”.

Lidar com a frustração é parte inseparável da vida

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Lições sobre o amor a Deus e a nossa vontade própria

Neste sentido, para nós, imperfeitos, que ainda não amamos suficientemente a Deus e somos apegados demais à nossa própria vontade. Uma das grandes lições ensinadas pela nossa fé católica é como fazer da frustração uma espécie de amiga íntima. Isso mesmo, amiga, e daquelas do peito, do coração, com quem contamos para o que der e vier. Ao invés da grande inimiga, que devemos combater a todo custo, como o mundo ensina, a frustração deve ser bem-vinda na nossa vida, porque funciona como aquela luz no painel do carro, que, basta acender, nos diz que há algo de errado, algo que devemos analisar e tratar antes de continuar a viagem. A frustração é um sintoma de algo mais grave, e assim devemos tratá-la se queremos crescer na perfeição, ou seja, no amor a Deus.

Antes de avançar nessa reflexão da frustração como sintoma, convido você a contemplar por um instante a minha filha mais nova, Cecília, que ainda não completou quatro anos. Nós já jantamos, arrumamos a casa, as crianças mais velhas já foram dormir e restamos somente minha esposa, Cecília e eu. Digo-lhe que é hora de dormir. Ela imediatamente se entristece, grita “não quero dormir!” e chora, porque quer brincar mais. No dia seguinte, ao terminar de tomar um copo de iogurte, Cecília diz que quer mais e faz birra quando digo que não tem. É que ela ainda não compreende essa ideia terrível de que o mundo não gira ao seu redor, e que nem sempre a história vai terminar com o final feliz que ela imaginou.

Adultos também fazem birra quando seus planos são frustrados

Não é incomum que nós, que já somos crescidinhos, também façamos birra quando nossos planos são frustrados. Isso vale para pequenas coisas, como a chuva no único dia que eu tinha livre para ir à praia, e me faz ficar de mau humor até a hora de dormir, ou para eventos mais significativos, como a doença de um ente querido, que me obriga a rever os meus planos, limita minhas escolhas e conduz a minha vida. Lidar com a frustração é parte inseparável da vida, porque, a cada passo, corro o risco de descobrir que fulano não é exatamente quem eu achava que fosse, que o aumento que eu esperava não veio, que beltrano mente, ciclano não dá tanta bola pra mim, o tempo anda cada vez mais quente, minha saúde não é mais a mesma e eu mesmo não tenho tanta força de vontade como gostaria de ter.

O ponto – e aqui volto à frustração como sintoma – é que não dá para ser criança para sempre. Choro, tristeza e raiva, birra, gritos e manha não costumam resolver muita coisa na vida real. E se você é adulto, essas coisas só fazem mal, adoecem o corpo e a alma. É necessário, portanto, assumir uma postura diferente diante da frustração, e já que estamos falando de reforma interior, a frustração é aquele vazamento no teto que nos alerta para a necessidade de consertar o telhado, a rachadura na parede que esconde um defeito estrutural que não pode mais ser ignorado.

Façamos um exercício…

Se você não está entendendo bem o ponto a que quero chegar, gostaria que você fizesse um exercício comigo, tente lembrar as últimas, três situações em que você sentiu a frustração realmente dominar seu coração.

Talvez tenha sido com você mesmo: “Eu tinha prometido a mim mesmo que não iria mais comer doce até perder cinco quilos e acabei de comer dois brigadeiros enormes. Eu não tenho jeito…”, talvez tenha sido com seu cônjuge, com um filho, um pai, não sei.

Fez o exercício? Não? Então volte dois parágrafos, leia e faça o exercício.

Quando tiver refletido sobre as suas últimas três frustrações, leia isso:

“Jesus, agradeço-Vos pelas pequenas cruzinhas diárias, pelas contrariedades nos meus planos, pelas dificuldades na vida em comum, pela má interpretação das minhas intenções, pela humilhação que sofro dos outros, pela saúde fraca e esgotamento físico, pela abnegação da vontade própria, pelo aniquilamento do próprio eu, pela incompreensão em tudo, pelo transtorno de todos os meus planos” (Diário de Santa Faustina, 343).

Santa Faustina não está inventando nada aí. Ela experimentou incessantemente seus planos serem frustrados, suas intenções serem mal interpretadas, sua saúde se tornar cada dia mais frágil. Ela foi incompreendida, humilhada, testemunhou o aniquilamento do seu próprio eu e, pasmemos!, agradecia a Deus por tudo isso. Por que alguém faria isso? Retornemos ao capítulo 12 da Carta de São Paulo aos Romanos: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, a saber, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito” (Rm 12,2).

Esgotar o cálice da vontade de Deus até a última gota

O objetivo de tudo, portanto, é distinguir qual a vontade de Deus para a nossa vida, porque tudo  que Ele quer é bom. É por isso que Santa Faustina continua:

Eis que aproximei os lábios do cálice da Vossa santa vontade; seja feito comigo o que a Vossa sabedoria planejou antes dos séculos. Desejo esgotar o cálice dos destinos até a última gota, sem investigar seus significados; na amargura até a minha alegria, no desespero a minha confiança. Em Vós, Senhor, tudo o que dá o Vosso coração de Pai é bom; não preferindo consolos às amarguras, nem amarguras aos consolos, por tudo Vos agradeço, Jesus.

Esgotar o cálice da vontade de Deus, até a última gota

Quem quer chegar à perfeição precisa, como Santa Faustina, aproximar os lábios do cálice da vontade de Deus; mais que isso, precisa nutrir o desejo de esgotar esse cálice até a última gota, sem investigar seus significados, ou seja, abandonar-se com confiança nos planos de Deus, que são perfeitos. Para beber esse cálice, contudo, preciso desapegar-me da minha vontade. Como um escultor que passa a mão pelo mármore da sua obra a fim de perceber suas imperfeições e, identificando uma parte áspera, põe-se ao trabalho de lixar a superfície com todo cuidado, até alcançar a perfeição, assim a frustração nos mostra onde a nossa vontade está dissonante da vontade de Deus.

Como Santa Faustina, devemos louvar a Deus pelos dissabores, porque ali encontramos matéria-prima para a nossa reforma anterior. A frustração me revela meu orgulho? Devo, portanto, trabalhar a minha humildade. A frustração me revela um apego desordenado a alguém? Devo exercitar-me no amor a Deus acima de todas as coisas, o que ordena os meus afetos, colocando cada um no lugar que deve ocupar em minha vida.

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Não podemos nos esquecer de que essa lição foi ensinada antes de todos por Cristo. Com sua própria vida, desde o nascimento, até o Horto das Oliveiras e o Gólgota. Pode ser resumida numa simples frase, repetida incontáveis vezes todos os dias por católicos e protestantes, crentes e não crentes em todos os cantos do mundo: “Seja feita a Vossa vontade”. Quer aproveitar bem essa Quaresma? Cada vez que sentir-se frustrado, faça a oração que Cristo fez no Getsêmani: “Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice! Todavia, não se faça como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26, 39).

Equipe Formação Canção Nova