Valor a vida

Reflita: compaixão ou cultura de morte?

Compaixão ou cultura de morte diante da eutanásia

O apresentador britânico Ray Gosling, que confessou na TV ter matado por piedade seu amante em estado terminal. Gosling afirmou em programa da BBC que sufocara no hospital o namorado que sofria terríveis dores por ter contraído o vírus HIV. Seu comportamento teve como motivação um pacto, selado por ambos, no qual se afirmava o suicídio assistido como solução para o sofrimento insuportável. De acordo com os noticiários, tal caso reacendeu a discussão no Reino Unido sobre eutanásia e suicídio assistido.

Como avaliar, do ponto de vista da moral cristã, a decisão de Gosling? Será que tal comportamento, motivado pela compaixão, se justifica?

Reflita compaixão ou cultura da morte

Foto: Daniel Mafra/cancaonova.com

Postura diante da eutanásia

Para respondermos a tais questões, devemos entender, primeiramente, o significado de eutanásia. Do grego “eu”, bom, e “thanatos”, morte, o termo “eutanásia” significa a “boa ou doce morte”. Na encíclica “O Evangelho da Vida”, Papa João Paulo II afirma o seguinte: “Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma ação ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento” (n. 65). O saudoso Sumo Pontífice vê, nessa prática, um dos sintomas da “cultura da morte” e denuncia o crescimento de uma mentalidade que marginaliza as pessoas idosas, deficientes e vulneráveis. A partir de critérios de eficiência e produtividade, essas vidas são consideradas descartáveis. Sendo assim, o melhor a fazer é eliminar tais pessoas, recorrendo a argumentos como: respeito à autonomia e direito à morte.

No entanto, antes ainda de falar do direito à morte, temos de lutar para que o direito à vida já existente seja honrado, até porque, muitas vezes, esse maravilhoso dom é abreviado “antes do tempo”, em escala social, por causa da violência, da pobreza, da falta de recursos socioeconômicos que garantam a todos o direito não só a viver, mas a viver com dignidade. É chocante e até irônico constatar que a mesma sociedade que negou o pão, o emprego, a saúde, a educação, para o ser humano viver, esta mesma sociedade pretenda oferecer-lhe, como prêmio de consolação, a mais alta tecnologia para “bem morrer”.

A decisão tomada pelo apresentador britânico recai em um caso particular de eutanásia, ou seja, o suicídio assistido. Também na encíclica “O Evangelho da Vida”, o Papa esclarece que o suicídio, sob o perfil objetivo, é um ato gravemente imoral, “embora certos condicionamentos psicológicos, culturais e sociais possam levar (uma pessoa) a realizar um gesto que tão radicalmente contradiz à inclinação natural de cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjetiva”. A tradição da Igreja sempre recusou o suicídio como escolha gravemente má, porque “comporta a recusa do amor por si mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as várias comunidades (família, amigos, Igreja, trabalho etc.) de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto”. E continua o Papa João Paulo II: “No seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte” (n. 66). Sendo assim, o chamado “suicídio assistido”, ou seja, compartilhar a intenção de alguém que quer se suicidar e ajudando-o a realizar tal ato, significa “fazer-se colaborador e, por vezes, autor em primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser justificada, nem sequer quando requerida”.

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A vida é inviolável

A avaliação moral da eutanásia e do suicídio assistido deverá sempre considerar que a vida humana é inviolável, ainda que marcada pelo drama da dor e do sofrimento. Ninguém, por sua própria vontade, se dá o direito a vir à existência; a vida é dom de Deus. Da mesma forma, ninguém tem o direito a matar quem quer que seja ou destruir a própria vida. Além disso, devemos rejeitar toda e qualquer consideração utilitarista da vida humana. Explico-me melhor. Motivados por visões ideologizadas a respeito do significado de qualidade de vida, alguns consideram os doentes em fase terminal ou os deficientes físicos como pessoas cuja vida tem pouca ou nenhuma “qualidade”. Em tais visões, identificamos o perigo da arbitrariedade, isto é, a manipulação ideológica e indiscriminada da vida dessas pessoas por parte da autoridade política ou dos profissionais da área da saúde, criando, assim, uma mentalidade favorável à cultura da morte.

Deve-se buscar sempre o verdadeiro motivo que leva alguém a pedir a morte. No fundo das várias solicitações de eutanásia e de suicídio assistido, existem profundas angústias, experiências de solidão, abandono e falta de solidariedade. O que a pessoa realmente necessita é de melhor assistência, tratamento personalizado, espiritualidade e muita ternura humana. A pessoa deve ser valorizada de modo integral, não só como um “corpo” doente, mas uma pessoa, um filho de Deus, alguém que possui um nome, um rosto, uma história, uma dignidade a ser defendida e promovida. É fundamental que o cuidado integral em relação ao enfermo, na fase terminal, seja ainda mais humanizado.

Ao paciente que se encontra diante da morte iminente e inevitável, e também àqueles que estão ao seu redor,– sejam familiares, amigos, profissionais de saúde –, deve ser dada toda ajuda possível para que enfrente, com naturalidade, a realidade dos fatos, encarando o fim da vida não como uma doença para a qual se deva achar a cura a todo custo, mas sim como condição que faz parte do nosso ciclo natural. A fé cristã ainda possibilita ao enfermo perceber o drama do sofrimento como oportunidade de fazer comunhão com o mistério do sofrimento de Cristo, cujas chagas gloriosas são esperança de uma imortalidade feliz.

Padre Wagner Ferreira da Silva
Doutor em Teologia Moral
Formador Geral da Comunidade Canção Nova